O sacrifício de Elmano Sancho à procura do diálogo
Em Cordeiros de Deus ou Soldados da Esperança, em cena na Culturgest, o autor e encenador escolhe dez momentos, entre a II Guerra Mundial e a actualidade, tocados pela ideia de sacrifício.
Oficial do exército polaco, Witold Pilecki entregou-se, em 1940, às forças nazis que acabavam de invadir o seu país para ser encarcerado em Auschwitz. O seu intuito era criar uma organização de resistência no campo de concentração, mas acabaria por documentar todos os horrores vividos num lugar que seria afinal campo de extermínio. Foi ao cruzar-se com o chamado “relatório Pilecki” que Elmano Sancho começou a reflectir sobre a ideia de sacrifício, impelindo-o a escrever Cordeiros de Deus ou Soldados da Esperança, peça que apresenta desta quarta-feira até sábado na Culturgest, em Lisboa (a última data contará com audiodescrição e interpretação em Língua Gestual Portuguesa).
O autor, actor e encenador queria perguntar-se, na construção de um espectáculo, “o que significa hoje em dia esta ideia de sacrifício – não um sacrifício individual, que todos fazemos nas nossas vidas, mas em prol do bem comum”, explica ao PÚBLICO. O sacrifício, na verdade, circundava já a sua trilogia anterior (A Sagrada Família), em especial a peça Jesus, o Filho, quando o filho, num gesto radical, decidia retirar-se do mundo por não querer pactuar com a realidade a que assistia. Mas, para Cordeiros de Deus, Elmano Sancho (que partilha o palco com Custódia Gallego, Duarte Melo, Lucília Raimundo e Rafael Carvalho) queria atravessar um período mais lato, da Segunda Guerra Mundial até à actualidade, e criar um diálogo com situações e pessoas que se sacrificaram ou foram sacrificadas em nome de algo maior do que as suas vidas.
“Existe sempre alguém que morre para salvar o mundo”, ouve-se no prólogo de Cordeiros de Deus. “Jesus morreu para salvar a humanidade. Pessoas que poderiam ter mudado o mundo morreram. Com sida. Com covid. Em guerras desleais. Precisamos de sacrificados para continuarmos vivos. De gerações perdidas. De pessoas que morrem por nada. Da mesma forma que precisamos de empregadas domésticas. De lixeiros. De putas. De coveiros. De anjos silenciosos que limpam a merda do mundo.”
É a partir deste enorme escopo, que vai daqueles que morrem para salvar a humanidade aos outros que morrem por nada, que Elmano Sancho constrói um espectáculo dividido em dez quadros, avançando por cima da linha cronológica de Pilecki e do período da Segunda Guerra Mundial, até ao conflito israelo-palestiniano actual, passando pelas Mães de Maio na Argentina, pela epidemia da sida, pelo genocídio no Ruanda, pelo 11 de Setembro, pelos atentados de Paris, no Bataclan e em lugares públicos como esplanadas.
Para cada um destes quadros, o autor elege uma série de figuras com as quais dialoga (Pilecki, Hebe de Bonafini, David Wojnarowizc, Gaël Faye e Beata Umubyeyi Mairesse, Susan Sontag, Laurent Gaudé e Delphine Horvilleur), gente que escreveu e reflectiu sobre cada um dos acontecimentos e com quem Elmano Sancho quer conversar.
“Em vez de tentar falar sobre sacrifício, tentei dialogar com pessoas que reflectiram sobre o sacrifício", explica. "Mas quando falo em conversar com elas, refiro-me às obras que fizeram.” O que depois pode resultar, como no caso do quadro dedicado ao 11 de Setembro e ao diálogo com Susan Sontag, num texto que se foca no anónimo "falling man", símbolo gráfico de uma tragédia transmitida em directo pelas televisões do planeta, olhando o chão e imaginando “uma jornada solitária de dez segundos aos olhos do mundo”.
Gritar e não ser escutado
A forma dialógica escolhida por Elmano Sancho, que opta por não identificar cada um dos momentos – foi limpando o texto e retirando toda a informação factual, para que o espectáculo não se torne demasiado explicativo, para que os episódios possam confundir-se e a partir deles se forme uma única voz – prende-se também com “o sacrifício de Jesus na cruz, ao dizer que a violência não serve mais como moeda para o bem comum, e que aquilo que interessa é o diálogo”. No fundo, Cordeiros de Deus é uma peça construída em torno da convicção de que o diálogo é o maior bem comum a almejar na vida em sociedade, “sinal de liberdade e de democracia” que o criador gostaria de ver reinventado como um sentido colectivo.
Porque há sempre uma procura de sentido em todos estes momentos levados a palco, por mais que retratem exemplos do absurdo completo a que a humanidade consegue chegar. Mas Cordeiros de Deus não é uma peça em que Elmano Sancho tenta perceber o sacrifício ou acercar-se de qualquer conclusão ou tratado sobre o assunto. É um espectáculo de dúvida, atravessado por uma violência que sabia querer colocar na encenação e nos actores. Não se pode abordar acontecimentos trágicos sem transportar para cena uma certa dose de violência. Nem mesmo – ou sobretudo – quando se escolhe Deus, o próprio, como derradeiro interlocutor. Deus, claro, apesar da tentativa repetida, não responde. E aquilo que fica é um grito e uma urgência de quem tenta ser escutado e sabe que a única resposta é o silêncio.