Abandono do cultivo de cereais em Portugal põe em risco águia-caçadeira

Transformação da paisagem agrícola portuguesa nas últimas três décadas, com aposta na criação de gado, encurrala águias-caçadeiras e outras aves numa “armadilha ecológica”.

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Á águia-caçadeira A águia-caçadeira, ou tartaranhão-caçador, é diferente da maioria das águias, pois nidifica no solo João Gameiro
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O rápido declínio da águia-caçadeira em Portugal — em dez anos, rondou os 80% — é causado por "armadilha ecológica", relacionada com as transformações da paisagem agrícola portuguesa nos últimos 30 anos, conclui um estudo liderado por cientistas do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto (Biopolis-Cibio).

A águia-caçadeira, também conhecida como tartaranhão-caçador (Circus pygargus), tem a particularidade de fazer o ninho no solo, ao contrário da maioria das espécies de águias. Na Europa, está fortemente associada a habitats agrícolas, onde grande parte da população destas aves depende agora de culturas de cereais para fazer o ninho, explica um comunicado de imprensa do Biopolis-Cibio.

Mas, através da análise de dados do Instituto Nacional de Estatística, que descrevem as principais alterações no uso do solo agrícola entre 1989 e 2019, a equipa — que inclui ainda cientistas da Palombar-Conservação da Natureza e do Património Rural​ e do Conselho Superior de Investigações Cientificas de Espanha — conseguiu identificar e quantificar o quase total abandono de produção de cereal, agora em históricos mínimos. Foi substituída pela produção de gado bovino.

"O impacto da expansão da produção bovina em Portugal já tinha sido demonstrado, mas ainda não tinha sido analisada a questão à escala de todo o território continental", salienta João Paulo Silva, o coordenador do estudo publicado na revista Conservation Science and Practice, citado num comunicado de imprensa.

"A especialização e homogeneização da paisagem para pastagens permanentes retira a complexidade à vegetação de que muitas aves agrícolas dependem", acrescentou o investigador. Além disso, verificou-se uma intensificação destas pastagens permanentes, o que leva a uma degradação do habitat. "A cobertura de vegetação torna-se muito reduzida", disse João Paulo silva.

Em Portugal, o censo mais recente da águia-caçadeira, realizado em 2022-2023, aponta para um declínio de quase 80% em 20 anos. Portugal continental terá, neste momento, entre 119 e 207 casais de águia-caçadeira. O Livro Vermelho de 2005, referindo-se a dados com uma década de existência, apontava para a presença de entre 900 e 1200 casais.

O crescimento da produção de gado fez aumentar a área com culturas forrageiras, que agora representam "mais de metade das terras aráveis" em Portugal continental. Isto faz com que espécies como a águia-caçadeira caiam numa "armadilha ecológica."

O que é esta armadilha? "Isto acontece quando um animal é atraído para uma área, sem saber que tem menor qualidade ou que vai acabar por lhe reduzir a sobrevivência ou o sucesso reprodutor", explicou João Gameiro. É um túnel que se vai tornando cada vez mais estreito.

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Em Portugal, o censo mais recente da águia-caçadeira, de 2022-2023, aponta para um declínio de quase 80% da espécie em 20 anos João Gameiro

Em Portugal, quando as águias-caçadeiras se tentam estabelecer, preferem as culturas forrageiras com fenos de aveia, que são em maior quantidade e estão mais desenvolvidas do que as culturas de grão, como trigo. No entanto, as culturas forrageiras são cortadas mais cedo, "muitas vezes, antes mesmo de os ovos desta ave eclodirem".

Algumas águias chegam a tentar fazer segundas posturas, em parcelas com grão que ainda persistem, mas voltam a não ter sucesso reprodutivo, porque as culturas já estão próximas do tempo de corte. Esta é, portanto, uma dupla armadilha ecológica, salienta o comunicado.

Beatriz Arroyo, investigadora espanhola que trabalha há vários anos com esta espécie, esclarece que o problema já tinha sido identificado noutros países. "Mas a predominância de fenos em Portugal, e o seu corte precoce, leva a ameaça ao extremo".

É uma pista muito importante: "Esta pode ser uma das principais causas pelo declínio acentuado nesta e noutras espécies importantes como a abetarda, o sisão ou a perdiz", salienta João Gameiro.

Os investigadores sublinham que a solução para manter a águia-caçadeira na paisagem agrícola portuguesa passa por identificar e proteger os ninhos, "o mais rapidamente possível", e colaborar com os agricultores para manter uma faixa não cortada ao seu redor.

"Os agricultores são parte da solução e é necessário rever as medidas agro-ambientais e torná-las economicamente atractivas", defende João Gameiro.

Já o co-autor do estudo e director da Palombar, José Pereira, salienta que um projecto europeu LIFE, intitulado "SOS Pygargus" vai focar-se na recuperação das populações nacionais e transfronteiriças com Espanha nos próximos anos.