Os cães vadios da Turquia já foram os “reis das ruas”, mas agora enfrentam outros perigos

Os activistas do bem-estar animal temem que as novas leis legitimem o abate em massa de cães vadios. Mas há um conjunto de cidadãos empenhados em dar a estes animais uma vida digna.

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Salwan Georges/The Washington Post
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Num nos arredores de Istambul, Murat Cem Yetkin refere-se às suas dezenas de cães vadios como "os miúdos".

Há o Handsome, que é um cão de caça rechonchudo, e um enorme pastor da Anatólia chamado Sarin. Bem tratados e relativamente livres, vagueiam pela propriedade de Yetkin — e estão agora entre os cães mais sortudos da Turquia.

Este Verão, o Parlamento turco aprovou uma lei para regulamentar os cerca de 4 milhões de cães vadios do país. Esta lei exige que os municípios recolham os cães vadios, encaminhados para uma rede de abrigos sobrelotada e posteriormente eutanasiados.

Os activistas dos direitos dos animais, receando um abate em massa, chamam-lhe "lei do massacre".

A medida foi introduzida pelo partido do Presidente Recep Tayyip Erdogan, actualmente no poder, e motivada em parte por ataques de cães, incluindo a crianças, que receberam muita atenção mediática. Contudo, provocou indignação num país onde um grupo de cidadãos empenhados cuida dos animais de rua, deixando comida e água nos passeios e esquinas das cidades, vilas e aldeias da Turquia, uma prática com centenas de anos.

Um cão vadio dorme num bar em Istambul Salwan Georges/The Washington Post
É comum ver cães vadios a vaguear nas ruas de Istambul Salwan Georges/The Washington Post
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Um cão vadio dorme num bar em Istambul Salwan Georges/The Washington Post

A lei também alimentou as divisões políticas da Turquia: alguns presidentes de câmara da oposição recusaram-se desde logo a aplicá-la, mesmo sob ameaça de serem encarcerados.

Os activistas dizem temer que o abate dos animais esteja já em curso. Num bairro dos arredores de Ancara, capital da Turquia, filmaram recentemente o que dizem ser cadáveres de canídeos, largados em sacos de plástico em valas de terra. Haydar Ozkan, vice-presidente da Confederação dos Direitos dos Animais à Vida, disse ter testemunhado "uma cena terrível" no bairro de Altindag.

As autoridades recolheram alguns dos corpos como prova e um procurador em Ancara abriu uma investigação, noticiaram os meios de comunicação locais. Em comunicado, o município negou que os cães tivessem sido mortos, afirmando que o local era um cemitério para animais que "morreram de causas naturais, acidentes de viação ou infecções". O presidente da câmara local é um conhecido amante dos animais, refere o comunicado.

Outro vídeo que circulou nas redes sociais na semana passada mostrava um homem a esfaquear repetidamente um cão com uma forquilha, na berma de uma estrada numa zona rural nos arredores da capital da Turquia. Quem o filmava perguntou: "Onde está o Estado?" O homem foi gravado a responder que "o Estado aprovou uma lei para matar estes cães". O cão foi morto e a polícia prendeu mais tarde o autor, noticiaram os meios de comunicação locais.

"Não há forma de pôr termo a isto, a menos que a lei seja revogada", afirmou Ozkan.

O primeiro projecto de lei, divulgado em Maio, propunha o abate dos cães vadios que não fossem adoptados nos abrigos no prazo de um mês. Depois da reacção negativa que se seguiu, e que incluiu protestos, o partido actualmente no poder apresentou uma versão atenuada em Julho. Contudo, defendeu a medida como a única solução para os ataques de cães, os acidentes de viação que envolvem animais e os surtos de doenças, como a raiva.

As famílias das crianças feridas exigiram medidas e os meios de comunicação social fizeram circular fotografias de vítimas de ataques de cães registados ao longo do ano passado. A atenção que estes ataques mereceram sugeria que se tinha registado um aumento nas ocorrências, embora não existam números oficiais que o confirmem.

Apesar disso, a população de cães vadios tem vindo a aumentar "exponencialmente" todos os anos, defendeu Erdogan num discurso aos membros do seu partido em Junho. Os cães "atacam crianças, adultos, idosos e outros animais".

"Não se comprometam", acrescentou Erdogan, referindo-se à aprovação da medida. "Se Deus quiser, vamos acabar com isto."

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Dois cachorros do abrigo de Yetkin Salwan Georges/The Washington Post

A campanha para abater os cães vadios foi impulsionada, em parte, pelo partido Novo Bem-Estar, um partido político islâmico conservador fundado por Fatih Erbakan, filho do mentor de Erdogan. Após o inesperado sucesso do partido nas recentes eleições autárquicas, uma das promessas principais foi retirar os cães das ruas.

O presidente da Câmara de Sanliurfa, que pertence ao Novo Bem-Estar, cumpriu-a em Junho, depois de alguns cães terem mordido pelo menos duas pessoas na cidade do Sudeste.

"Os reis da rua"

A omnipresença de cães vadios é, desde há muito, uma característica da vida quotidiana em Istambul e noutras partes da Turquia, tal como as tentativas de controlar a dimensão da sua população. No seu livro Constantinopla, o escritor italiano Edmondo de Amicis descreveu Istambul de finais do século XIX como "um enorme canil".

"Eles são os reis da rua", escreveu.

"Toda a gente sabe como os turcos os amam e protegem, mas não é tão fácil entender porquê", continuou, enquanto procurava explicações que incluíam a superstição e a religião. À semelhança de outros visitantes estrangeiros ao longo dos anos, reconheceu que os cães — "sem coleiras, nem donos, nem canis, nem lares, nem leis" — eram necrófagos sem igual no que toca ao controlo de resíduos na cidade. Estavam "dispostos (...) a comer praticamente tudo, excepto pedras", escreveu.

Mas também houve esforços para controlar a população canina, incluindo abates em massa. A tentativa mais sistemática e violenta ocorreu em 1910, durante os últimos dias do Império Otomano, quando mais de 80.000 cães foram transportados para Sivriada, uma pequena ilha ao largo de Istambul, e deixados sem comida nem água.

Vinte anos mais tarde, um artigo do New York Times sobre a "praga" de cães vadios de Istambul referia que os cães "sem dono" que vagueavam pelas ruas estavam a assustar as pessoas e eram de uma "raça mais forte" do que os seus antecessores banidos para a ilha.

Contudo, ao longo das últimas duas décadas, activistas e políticos tentaram colocar a protecção dos animais na lei, incluindo em 2004, quando a Turquia estava a tentar aderir à União Europeia, e em 2021, quando o Parlamento aprovou uma lei que impunha punições severas para os maus tratos a animais e reclassificava os animais como "seres vivos", em vez de objectos.

Mas a lei não melhorou a disponibilidade ou a qualidade dos abrigos, que Ozkan, activista, comparou a "campos de morte". As imagens de um funcionário municipal a espancar um cão até à morte num abrigo na cidade de Konya, no centro do país, há dois anos, suscitaram a indignação de todo o país e a cena foi condenada por Erdogan, que, juntamente com a sua mulher, Emine, adoptou um cão com deficiência do abrigo, durante a pandemia.

Segundo Ozkan, dos 1403 municípios da Turquia, 1100 não dispõem de abrigos. A nova lei obriga à construção de abrigos ou à melhoria dos existentes até 2028.

Em Junho, milhares de defensores dos animais reuniram-se no centro de Istambul para protestar contra a medida. Esra Dincer, de 49 anos, que estava presente com a filha, segurava uma faixa onde se lia "esterilizar, amar e proteger", juntamente com uma fotografia sua abraçada a um gato grande e amarelo. A família cuida de gaivotas, ouriços, gatos e cães vadios no seu bairro, e tem dois gatos e um peixe em casa.

"Quando eu era criança, matavam os cães mesmo à nossa frente por causa do aumento da população. Agora, matam-nos com injecções. As consequências não mudam enquanto não se resolver o problema", afirmou.

Yetkin, proprietário do abrigo nos arredores de Istambul, disse que o ódio aos cães já vinha de há muito e que todos os partidos políticos da Turquia eram responsáveis. Ao longo dos anos, em vez de castrar, esterilizar e devolver os cães vadios às ruas, os municípios — independentemente do partido no poder — deixavam os cães em abrigos abandonados ou atiravam-nos para a floresta.

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O abrigo de Yetkin Salwan Georges/The Washington Post

Mesmo antes de abrir o seu abrigo, numa casa que arrendou em Maio, Yetkin estava entre os muitos no país que intervieram para prestar cuidados quando as autoridades não o fizeram, alimentando os cães que foram banidos para o deserto ao longo da última década.

Técnico fabril a tempo parcial, Yetkin seguiu uma rotina rigorosa desde a abertura do abrigo, alimentando os cães a partir das 5h da manhã, limpando os canis e medicando os animais doentes.

O abrigo, protegido com arames e coberto com lonas de plástico azuis, está a ficar lotado e manter a paz entre os cães — os idosos, os jovens, os agressivos — é um desafio diário. Mas há mais cães para salvar.

Há pouco tempo, Yetkin passou a tarde num bosque, à procura de uma cadela idosa que tinha visto anteriormente e transportando sacos de comida no seu Fiat branco, para alimentar os vadios. "Há inúmeras formas de morrer aqui, e é doloroso", disse Yetkin. Há alguns anos, começou a pedir donativos para ajudar a alimentar e a cuidar dos animais.

Toca na buzina do carro e assobia. Surgem sombras escuras: cães magros que se aproximam dele, alguns com rastreados de plástico pendurados nas orelhas, um sinal de que tinham sido castrados. Mas a fêmea idosa não estava entre eles.

"Talvez tenha adormecido à sombra", conclui. "Ou talvez ela nunca mais volte. "


Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post

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