Terence Davies, o poeta do passado perdido

A Cinemateca dedica uma retrospectiva integral ao autor de A Bíblia de Néon e Vozes Distantes, Vidas Suspensas. Ocasião imperdível de descobrir um autor sem igual.

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The Long Day Closes dá arranque, esta segunda-feira, à retrospectiva de Terence Davies DR
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A Bíblia de Néon DR
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O Profundo Mar Azul DR
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Vozes Distantes, Vidas Suspensas DR
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"Em Xanadu, Kubla Khan ergueu um palácio de prazeres." Toda uma geração reconhecerá a referência do álbum de 1984 dos Frankie Goes to Hollywood Welcome to the Pleasuredome — coisa que teria horrorizado Terence Davies (1945-2023), o maior cineasta britânico que ninguém conhece, para quem a Inglaterra depois do rock’n’roll se rendeu inelutavelmente à barbárie (quem lhe tirasse o seu Mahler tirava-lhe tudo).

Para Davies, a referência evidente seria o poema de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) que o grupo citava no tema-título desse álbum que tomou de assalto os tops musicais; e nem é descabido juntar Davies e os Frankie, ambos nascidos em Liverpool, contemporâneos na cultura popular britânica nos anos 1980. Só que o realizador nunca atingiu o reconhecimento global do grupo, mesmo que até Jean-Luc Godard dele tenha dito ser "o único cineasta moderno que lhe interessava". A Cinemateca Portuguesa começa esta segunda-feira a dedicar-lhe uma retrospectiva integral: Terence Davies, o Cantor da Memória. Oito longas de ficção, um documentário-ensaio e meia dúzia de curtas até 13 de Setembro, com arranque esta segunda-feira, às 19h, com The Long Day Closes (1992), para explicar como o cineasta da cidade do Mersey se tornou num dos grandes poetas cinematográficos da memória, perpetuamente em busca do Xanadu perdido.

Os palácios do prazer de Davies eram as catedrais do cinema — os Odeon, ABC ou Empire das grandes cidades britânicas, as pictures (quase todas vindas dos EUA) que lhe permitiam as fugas em Technicolor para paraísos impossíveis na Grã-Bretanha cinzenta, racionada, resignada, ainda em reconstrução da Segunda Guerra Mundial. E (não apenas, mas também) porque essas catedrais estavam em vias de desaparecimento quando começou a filmar, todo o seu cinema é um requiem: pela sua própria infância e por uma certa ideia de Inglaterra. Davies estilizou em âmbar os tempos gloriosos e terríveis da infância urbana britânica nas últimas gerações antes dos Beatles, sem escamotear que a cultura popular de classe operária e o estetismo da classe educada se cruzavam muito mais do que a rigidez classista britânica sempre quis fazer parecer.

Em vida, Terence Davies assinou apenas oito longas-metragens de ficção. Todas foram filmes de época (os anos 1950 foram o "limite temporal" que nunca transpôs); todas trabalhavam o movimento do tempo e a inelutabilidade do progresso, o combate surdo entre o conservadorismo e a modernidade. Argumentista exclusivo do seu cinema, mesmo quando filmava criações de outros, adaptou romances de John Kennedy Toole (A Bíblia de Néon, 1994, com Gena Rowlands e Denis Leary; dias 5 e 11), Edith Wharton (A Casa da Felicidade, 2000, com Gillian Anderson; dias 6 e 13), e Lewis Grassic Gibbon (Sunset Song, 2015; dia 9), e uma peça de Terence Rattigan (O Profundo Mar Azul, 2011, com Rachel Weisz e Tom Hiddleston; dia 7); e filmou as vidas dos poetas Emily Dickinson (A Quiet Passion, 2016, com Cynthia Nixon e Keith Carradine; dia 11) e Siegfried Sassoon (Benediction, 2021; dia 10).

Filmes sobre personagens singulares, à parte, "perdedores" no jogo da vida. Mas sempre reflectindo os élans de amor e medo inscritos pela sua própria família, retratada de forma semificcional nas duas primeiras longas, Vozes Distantes, Vidas Suspensas (1988, dias 3 e 10) e The Long Day Closes (dias 2 e 6). Menos narrativas convencionais e mais colagens atmosféricas de memórias, são filmes moldados a partir da própria infância do realizador: benjamim de dez filhos de um pai abusivo que morreu era ele criança e de uma mãe amantíssima; apaixonado pelo cinema; católico fervente até se tornar em agnóstico ainda mais fervente ao ser confrontado com o desejo homossexual que sempre sentiu e sempre rejeitou.

Procurando o refúgio possível no escapismo do passado que não se pode mudar mas se pode reviver ad infinitum, Terence Davies quis ser actor mas descobriu-se realizador num dos exercícios obrigatórios do curso de teatro, com uma primeira curta (Children, de 1976) como início de uma trilogia autobiográfica (completada por Madonna and Child, de 1980, e Transfiguration, de 1983, exibida na íntegra dia 4). A "Trilogia" abriu a porta do passado, lançou a sua devoção a madalenas proustianas alimentadas pela música popular anglo-americana dos anos 1950, cantada colectivamente nos salões e nos pubs, num desejo ardente de pertença a uma comunidade, mesmo que fugaz.

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