“Não há floresta num buraco”. População e autarquias rejeitam ampliação de mina na Guarda

Projecto em consulta pública para alargamento da mina de Alvarrões, na Guarda, ameaça iniciativas de reflorestação que surgiram depois dos incêndios. “Não há floresta num buraco”, dizem os cidadãos.

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A mina de Alvarrões começou a ser explorada em 1992. DR - Movimento Acção pela Floresta
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O Movimento Acção pela Floresta foi criado por habitantes da região para recuperar as áreas afectadas pelos incêndios de 2022 na Serra da Estrela Tiago Bernardo Lopes/ARQUIVO
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“Só soubemos disto porque a Junta de Gonçalo imprimiu um papel e colocou à porta. Também houve um post no Facebook, engolido entre as outras publicações.” Foi assim que Mariana Castro e os outros moradores da freguesia de Gonçalo, no concelho da Guarda, dizem ter recebido a notícia de uma consulta pública sobre o alargamento da mina de Alvarrões.

A surpresa desaguou em indignação, alastrou-se à freguesia vizinha da Vela – que poderá ser invadida pela mina com este alargamento –, deu origem a uma petição e já encontrou aliados entre os autarcas da região. A resistência à ampliação da mina veio para ficar.

A mina de Alvarrões começou a ser explorada em 1992. De acordo com o Estudo de Impacte Ambiental, que está em consulta pública até 4 de Setembro, o plano de lavra actualmente em vigor “prevê a actividade em dois núcleos com cerca de 6,5 ha (64.650 m2), embora a exploração esteja a decorrer em três núcleos de exploração, estando os trabalhos a decorrer numa área intervencionada de 15,7 ha (156.730 m2)”.

Foi a própria Direcção-Geral de Energia e Geologia que, depois de aplicar uma sanção por incumprimento na sequência de um processo de contra-ordenação, impôs a suspensão das actividades no local. Em resposta ao PÚBLICO, a entidade descreve que “entendeu que a empresa teria de apresentar um novo Plano de Lavra (PL) e o respectivo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) em conformidade, para legitimar a continuidade da actividade de exploração de recursos minerais nesta área”.

Assim, a empresa pretende agora ampliar a área de exploração da mina para cerca de 32,60 ha (326.030 m2), regularizando a situação. O problema? A mina fica localizada a apenas 1,5 quilómetros do Parque Natural da Serra da Estrela, numa das principais entradas do parque, a de Valhelhas-Manteigas, numa área do Estrela Geopark Mundial da UNESCO e “inserido em parte” em zona de Reserva Ecológica Nacional (REN), com áreas de salvaguarda estrita por “risco de erosão hídrica do solo e zonas ameaçadas pelas cheias”, de acordo com documentos municipais.

“Isto não é só ‘não queremos cá a mina’”

O alarme soou para fora da Guarda através do alerta do movimento Acção pela Floresta, criado por habitantes da região para recuperar as áreas afectadas pelos incêndios de 2022 na serra da Estrela. A reabilitação da área florestal ardida e o apoio às pessoas que têm terrenos e não têm como cuidar deles é urgente, já que, explica Mariana Castro, “o que começamos a ver é que isto vai acontecer outra vez”.

O movimento tem estado a recolher assinaturas numa petição que será anexada à participação que os cidadãos vão submeter no portal Participa. Além da petição online, que já reúne cerca de três mil assinaturas, têm mobilizado algumas equipas de rua, que estiveram não apenas nas freguesias afectadas mas também no centro histórico da Guarda a recolher assinaturas e a incentivar os munícipes "e os cidadãos em geral", acrescenta Pedro Silva, do movimento Acção pela Floresta à participação no próprio portal Participa.

No sábado tiveram um espaço nas festas da freguesia da Vela para poderem explicar a situação aos outros munícipes e recolher assinaturas para a petição. Rita Mendes Martins, moradora da freguesia, diz que há ainda “muitas pessoas que não estão a par do que se está a passar”. E não falha uma: “Ninguém da Vela com quem eu tenha falado está a favor da expansão da mina”, explica. “Isto não é só ‘não queremos cá a mina’”, sublinha. “Queremos explicar às pessoas as implicações inerentes.”

“Não há floresta num buraco”

Mariana Castro foi ainda mais longe, até Boticas, distrito de Vila Real, para partilhar a história da população. Durante o Acampamento em Defesa de Covas do Barroso, organizado há duas semanas pela população que resiste a uma mina de lítio, foi convidada a contar o processo na Guarda. A arqueóloga, ainda desconfortável na pele de activista, falou das “demasiadas lutas” da população: “Fogos de um lado, mina do outro.”

Há também alguma frustração: “Vimos para cá povoar o interior e somos assim recebidos?”, lamenta Mariana Castro, em conversa com o PÚBLICO. “E depois querem que a juventude venha para a Cova da Beira?”

No final da intervenção, alguém pergunta se o movimento Acção pela Floresta não precisará de uma mudança de nome tendo em conta as novas lutas. Provavelmente não, pondera Mariana. “Não há floresta num buraco.”

Incongruências

O executivo municipal da Guarda vai emitir um parecer desfavorável à ampliação da mina de Alvarrões, aprovado por unanimidade a 26 de Agosto na reunião quinzenal do executivo perante o “relatório técnico exaustivo” elaborado pelos serviços da câmara.

O documento preparado pela equipa técnica desfia uma série de questões em que o EIA é insuficiente, identificando “algumas incongruências em todo o relatório”.

Por exemplo, descreve o presidente da câmara, o estudo de impacto ambiental menciona que na maioria da área de exploração da mina os declives não ultrapassam os 6%, quando os técnicos da autarquia identificaram declives superiores a 15%, “o que é diferente tendo em conta as escorrências”.

“Descuido total”

Há ainda outros riscos que, para as autarquias, estão longe de ser salvaguardados. A zona situa-se na bacia hidrográfica do Zêzere, alimentando a albufeira da barragem de Castelo de Bode, utilizada para abastecimento de água, designadamente a Lisboa. A exploração mineira “poderá ainda condicionar futuras captações de água superficial/subterrânea para rega na agricultura de subsistência presente ao longo do vale”.

“O município da Guarda vê o seu património natural em risco de destruição, assim como os territórios das suas gentes que se sustentam através de uma economia de subsistência rural típica de regiões montanhosas e que são fundamentais para a gestão da paisagem e equilíbrio do sistema agro-silvo-pastoril.”

“É um descuido total com este processo”, acusa Sérgio Costa, autarca da Guarda, para quem “a mais-valia para o desenvolvimento do território não existe, não existe mesmo”. “Esta exploração mineira, neste tipo de território, que já está fragilizado pelos incêndios, nunca vai representar uma estratégia de desenvolvimento sustentado”, resume.

Impacto negativo

Mesmo as promessas de criação de emprego com a expansão da mina passando de três para quatro postos de trabalho parecem irrisórias para os técnicos da câmara, e “não justificam de todo as consequências directas e indirectas inerentes a esta exploração mineira”. A “perda de qualidade paisagística na área envolvente” poderá ainda afectar uma outra actividade económica com potencial na região: o turismo.

Em suma, conclui o relatório, “o estudo não menciona os verdadeiros benefícios que esta exploração poderá trazer para o concelho e região”.

“Essa zona, onde neste momento se vê uma paisagem verde, com pinheiro-manso e até sobreiros, que é uma espécie protegida, poderá ser esventrada”, descreve o presidente da Junta da Vela, Carlos Gonçalves, que afirma que “o impacto negativo é muito evidente” e garante que apoiará os moradores da freguesia subscrevendo a petição contra a mina.

“Vai esventrar esta serra”

“Neste momento as minas estão activas numa área restrita, entre Gonçalo e Seixo Amarelo, na encosta”, descreve. “Se houver esse alargamento territorial, vai envolver toda esta área, a zona da Vela, que é uma área enorme. Vai esventrar esta serra”, lamenta.

“Não somos contra explorações mineiras se as minas forem no local certo e adequado, com todas as condições de remediação”, afirma Sérgio Costa, autarca da Guarda. Contudo, considera não ser este o caso: “Neste local é extremamente complicado”, explica, acrescentando as questões ambientais ao facto de estar “paredes-meias com populações”.

Aliás, a autarquia identifica uma desvalorização do património natural. “A área de exploração não tem qualquer plano de recuperação paisagística a decorrer”, descrevem os técnicos municipais. O facto de o Estrela Geopark Mundial da UNESCO não ser sequer referido no EIA revela, para a autarquia, um “profundo desconhecimento do território”.

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Dr - Movimento Acção pela Floresta

O “papão” do lítio

Os trabalhos terão como foco principal a exploração de feldspato e quartzo, para a produção de pasta cerâmica. Contudo, ao justificar o seu voto no parecer desfavorável, a vereadora socialista Adelaide Campos alertou para o interesse na exploração de lítio: “O que interessa, todos sabemos, é o lítio, que move grande parte das novas tecnologias automóveis”, afirmou, citada pelo jornal O Interior.

Não é claro, contudo, se, ou como, a extracção de lítio será feita. Os trabalhos de exploração a realizar na mina, reforça a proposta, “terão como foco principal a exploração de feldspato e quartzo, para a produção de pasta cerâmica”. O documento acrescenta que “não está prevista qualquer beneficiação do lítio contido na lepidolite para a produção de concentrados de lítio, sendo os pegmatitos explorados e expedidos sem qualquer beneficiação”. Fica por compreender de que forma, e com que triagem, serão expedidas as rochas com lítio.

Entretanto, a população vai procurando informar-se sobre o processo. Se a mina avançar, quais seriam os requisitos mínimos? Uma das iniciativas tomadas foi procurar aconselhamento da Initiative for Responsible Mining Assurance (IRMA), uma entidade que procura criar um standard global para exploração mineira responsável.

Irregularidades actuais

Mesmo quem não refere a preocupação com eventuais explorações de lítio também receia outras consequências. “Nós sabemos como começam, mas não sabemos como acabam”, nota Carlos Gonçalves, da Junta da Vela. “As empresas começam a ter lucros muito elevados com a exploração, têm cá máquinas, e tentam conseguir o máximo de rentabilidade.”

A impressão do presidente da junta é respaldada pelas considerações dos técnicos municipais: “O município da Guarda tem conhecimento de que este projecto surge como mais um extractivo em que o modus operandi da empresa Felmica é definido pela sobreexploração da área licenciada, ultrapassando limites estabelecidos ao ponto de desenvolver actividade em mais do dobro da área licenciada.”

Há ainda diversas questões levantadas sobre a falta de segurança associada à exploração de parcelas do terreno de forma irregular. “Não percebo, como autarca, como é que uma parte de uma mina está há anos seguidos a explorar territórios de uma forma ilegal e as autoridades não agiram”, nota ainda Sérgio Costa.

A DGEG, contudo, garante que nas deslocações realizadas desde a sanção por incumprimento “não foi observada qualquer reincidência destas práticas”.

Direito à informação

A Direcção-Geral de Energia e Geologia nota ainda que “a atribuição de direitos de exploração através de contrato administrativo de concessão não configura por si só a possibilidade da exploração”, sublinhando que o processo de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) em curso é um instrumento preventivo “com efectiva participação pública”, que tem por objecto, precisamente, “a recolha de informação, identificação e previsão dos efeitos ambientais de determinados projectos, bem como a identificação e proposta de medidas que evitem, minimizem ou compensem esses efeitos”.

Ao ouvir moradores e autarcas sobre o processo, salta também à vista a falta de espaços de diálogo e de comunicação directa entre as partes. Nem câmara, nem junta, nem cidadãos foram informados da intenção da empresa e muito menos convidados a dar os seus contributos durante a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental. O projecto é apresentado já pronto, em fase de consulta pública, tendo como única via de comunicação um formulário.

Já na altura em que a área total de concessão de exploração de depósitos minerais de quartzo, feldspato e lítio foi expandida para cerca de 641 hectares (6,41 km2), em 2015, “apenas as juntas de freguesia foram notificadas”, descreve o documento da autarquia. Mas, mesmo depois da criação do portal Participa, este tipo de projectos parece chegar demasiado tarde ao conhecimento das populações que residem nas áreas afectadas, surgindo de rompante e apanhando todos de surpresa.

Para Mariana Castro, um dos problemas deste processo é o facto de “estarem a fazer isto sem a participação da comunidade”. A impressão é que a empresa estava a tentar “não levantar muita poeira para ver se passam pelos pingos da chuva”.

O grupo MCS, dono da empresa Felmica, que detém a maioria da Sociedade Mineira Carolinos a entidade que assina o pedido de expansão da mina –, não respondeu às questões enviadas pelo PÚBLICO sobre as críticas feitas pelo movimento e sobre como pretende esclarecer a população quanto às dúvidas levantadas. O PÚBLICO tentou também contactar a empresa proponente, por telefone, mas sem sucesso.