Cerca de 2,3 milhões de hectares do Pantanal, no Brasil, foram consumidos por incêndios desde o início de 2024, segundo dados actualizados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Isto significa que mais de 15% deste bioma brasileiro, que abriga flora e fauna únicas – incluindo espécies ameaçadas de extinção –, foram total ou parcialmente afectados pelas chamas este ano.
“Temos vários registos de tamanduás queimados, resgatados ou mortos. Tínhamos confirmado até ao momento três onças-pintadas que morreram e outras quatro que foram resgatadas. Se até a onça-pintada [ou jaguar] que consegue correr, escalar e nadar está sendo afectada, imaginem os outros animais que não têm estas qualidades”, afirma ao PÚBLICO o biólogo Gustavo Figueirôa, da organização não governamental SOS Pantanal.
Na zona de actuação da organização não governamental Onçafari, que monitoriza com câmaras e uma equipa técnica uma área ocupada por 50 a 60 onças-pintadas, houve o registo de “uma onça carbonizada” e outras três Panthera onca feridas. Os animais com as patas queimadas ficaram a ser cuidados pela equipa da Onçafari. Outros 20 foram localizados fora de perigo.
“As onças-pintadas não conseguem deixar a região e podem sofrer diversos tipos de lesão, como patas machucadas pelo contacto com território queimado e pulmões comprometidos por inalação de fumaça, além, claro, das que são alcançadas pelo incêndio e não sobrevivem”, afirmou ao PÚBLICO Stephanie Simioni, coordenadora de conservação e operações da Onçafari.
O Pantanal é considerado a maior área húmida do mundo, estando localizado sobretudo no Brasil, nos estados do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul, mas cuja planície de inundação frequente se estende até aos territórios bolivianos e paraguaios. Entre os animais icónicos deste bioma está não só a onça-pintada (Panthera onca), mas também a arara-azul-grande (Anodorhynchus hyacinthinus) e o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla).
Os incêndios queimaram tanto ninhos como ovos da arara-azul-grande, mas o que mais preocupa Neiva Guedes, presidente do Instituto Arara Azul, é a alimentação desta espécie ameaçada. A Anodorhynchus hyacinthinus é muito selectiva na hora de comer e aprecia frutinhos de uma palmeira chamada acuri (Attalea phalerata), que assegura nutrientes para a população ao longo do ano, juntamente com a bocaiúva (Acrocomia totai), que frutifica de Setembro a Janeiro.
“O impacto maior foi nas palmeiras que servem de alimento para as araras. A palmeira acuri, que mantém a população de araras ao longo do ano, desde que nascem até a fase adulta, leva em média de um ano a um ano e meio para formar frutos no ponto em que as araras comem. Essas palmeiras foram muito afectadas e o impacto na alimentação delas será muito grande”, explica Neiva Guedes ao PÚBLICO.
O Instituto Arara Azul já está a recolher frutos de acuri em Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, com apoio da Secretaria Municipal de Ambiente, para garantir alimento às aves ao longo do próximo ano, ou um ano e meio, se necessário, refere a bióloga Neiva Guedes.
A arara-azul-grande é uma ave classificada como “vulnerável” no livro vermelho da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), mas que, há pouco mais de uma década, estava avaliada como “em perigo”. Esta evolução positiva no estado de conservação, segundo a SOS Pantanal, é devedora do trabalho que o Projecto Arara Azul realizou no terreno. Agora, com a degradação do habitat e a indisponibilidade de alimento, “a população está em risco”, alerta Neiva Guedes, e todos os esforços de conservação são poucos para evitar um retrocesso.
Há outras espécies que não despertam o interesse dos ecoturistas, mas que têm igual importância para o ecossistema, que são profundamente afectadas pelos fogos: serpentes, lagartos e anfíbios. “São os que mais morrem nos incêndios, nós dizemos que constituem uma fauna invisível, porque são pouco contabilizados”, lamenta Gustavo Figueirôa, numa videochamada.
“O ano mais seco da história”
Os fogos tiveram início no final de Maio – o que é invulgarmente cedo para esta zona húmida –, persistiram durante Junho e Julho, e, agora, em Agosto, ganharam proporções excessivas. Devido à seca extrema, que transforma em combustível o que devia ser matéria molhada, os incêndios no Pantanal brasileiro estão a trazer de volta memórias trágicas de 2020, quando o bioma foi atingido pelos piores fogos de que há memória.
Mais de metade do país encontra-se em situação de seca severa, o que é o mesmo que dizer que os incêndios eram quase previsíveis. A crise climática, mostrou um estudo recente, também tornou as condições propícias a fogos quatro vezes mais prováveis.
“Este é o ano mais seco da história do Pantanal. Está muito calor e os ventos estão muito fortes. Todos nós sabemos que estas são as três condições necessárias para um incêndio proliferar”, lamenta o biólogo Gustavo Figueirôa, que recorda que boa parte destes fogos tem início devido à actividade humana, ainda que não intencional.
Incêndios podem ter origem após actividades agrícolas como a utilização de máquinas ou a queima de vegetação, lixo ou vespeiros. “Existe uma necessidade urgente de reconhecer que o modelo agro-pecuário não dá garantias de que não estar a compactuar com as queimadas. Há todo um trabalho no Brasil a ser feito de conscientização de que a gente não pode mais, por exemplo, fazer limpeza de passagens nessa época do ano porque cria estes desastres”, afirma ao PÚBLICO Alice Thuault, directora executiva do Instituto Centro de Vida, numa videochamada.
Alice Thuault refere que, em 2020, por exemplo, o Instituto Centro Vida conseguiu “provar que 70% das queimadas tinham sido iniciadas com nove inícios de fogo no Mato Grosso. A entidade que lidera dedica-se a encontrar soluções sustentáveis para o uso da terra e dos recursos naturais naquele estado brasileiro.
“É claro que também há acidentes e é claro que há práticas indígenas que estão associadas ao fogo. Contudo, é sabido que 70% dos focos de calor estão em propriedades rurais privadas. Então, isto mostra que há aqui um modelo actual de agro-pecuária na região que tem de mudar”, conclui Alice Thuault.
Uma nota recente divulgada pelo MapBiomas já sublinhava a relação íntima entre água e fogo no Pantanal: quando há uma redução drástica da água na paisagem, como consequência de fenómenos de seca extrema, estão reunidas as condições ideias para incêndios de grandes dimensões.
O Pantanal foi o bioma que mais secou ao longo dos últimos 39 anos, segundo a análise técnica do MapBiomas. “A superfície de água em 2023 foi de 382 mil hectares – 61% abaixo da média histórica. O ano de 2023 foi 50% mais seco do que 2018, quando ocorreu a última grande cheia no bioma”, refere o documento.
Além do Pantanal, a Amazónia também testemunhou um alto número de incêndios este mês. No Sudeste, a região mais populosa do Brasil, foram igualmente registadas centenas de incêndios, com particular ênfase nos estados de Minas Gerais e São Paulo.
A Força Aérea Brasileira mantém com o Exército e a Marinha, há dois meses, uma acção de combate aos fogos no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul, denominada Operação Pantanal 2, a partir da base de Corumbá.
Nesta terça-feira, dia 27 de Agosto, o Supremo Tribunal Federal do Brasil deu um prazo de duas semanas ao Governo de Lula da Silva para reforçar o combate aos incêndios tanto no Pantanal, como na Amazónia, segundo a Lusa. O Governo brasileiro, por sua vez, afirma ter uma “forte suspeita” de que a vaga de incêndios que fustiga a Amazónia e o Pantanal, bem como a região sudeste, seja resultado de uma acção criminosa orquestrada.