Revelada a dupla face de uma pequena proteína que ora nos engorda, ora nos emagrece

Compreender os mecanismos biológicos associados à obesidade poderá ajudar a desenvolver terapias que potenciem o gasto energético, em vez de apenas suprimirem a ingestão de alimentos.

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O neuropéptido Y em axónios de neurónios simpáticos Peter Yitao Zhu/Universidade de Oxford
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O seu nome é pomposo e dá pistas sobre a complexidade que o envolve: falamos do neuropéptido Y (NPY, na sigla em inglês), uma pequena proteína com uma dupla face que ora nos engorda, quando está no cérebro (ao provocar apetite), ora nos emagrece, quando está na periferia (ao mexer com o metabolismo), revelou recentemente um estudo internacional coordenado pela cientista portuguesa Ana Domingos.

Sabe-se que a obesidade resulta de um desequilíbrio na homeostase energética, quando a ingestão de energia excede o gasto calórico (ou, por outras palavras, a energia que se gasta), sendo a termogénese – ou seja, a produção de calor nos organismos vivos –​ um processo que contribui muito para a dissipação de energia. Daí o interesse de Ana Domingos em explorar os processos termogénicos para combater a obesidade.

Estudos anteriores tinham já demonstrado o papel do NPY nos neurónios do sistema nervoso central (cérebro) como um péptido orexigénico, ou seja, que promove a ingestão de alimentos. Agora, este estudo com mão portuguesa e feito em ratinhos, publicado na revista Nature, revelou que, no sistema nervoso periférico – isto é, num tecido diferente fora do cérebro e da medula espinhal –, esta pequena proteína desempenha um papel protector contra a obesidade, uma vez que está também associada ao gasto energético.

O NPY é, portanto, um neurotransmissor responsável por passar informações entre neurónios que é muito estudado por cientistas no que diz respeito ao sistema nervoso central. No entanto, a sua actuação em nervos periféricos (fora do cérebro e da medula espinhal) e a sua capacidade de actuar em células de gordura (adipócitos), protegendo o organismo contra a obesidade, não tinham ainda sido investigadas, destaca a Fundação de Apoio à Investigação do Estado de São Paulo (FAPESP).

Ana Domingos, investigadora portuguesa da Universidade de Oxford, no Reino Unido, que coordenou o estudo, começa por explicar ao PÚBLICO que os estudos antigos baseados em animais mostram que, no cérebro, o NPY promove o apetite, “mas a evidência moderna e genética em humanos aponta para que a perda de função deste péptido não tem qualquer impacto no comportamento alimentar”. Porém, tem impacto no índice de massa corporal.

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A investigadora Ana Domingos DR

A investigadora destaca esta associação genética humana recentemente identificada pelo Portal do Conhecimento das Doenças Metabólicas Comuns, que mostra que o NPY está ligado ao índice de massa corporal (IMC) nos humanos, mas não a alterações nos padrões de consumo alimentar.

“Nos humanos, se a acção no cérebro deste péptido [NPY] fosse tão importante assim para promover o comportamento alimentar, esperar-se-ia que na evidência genética a perda de função deste péptido iria suprimir o complemento alimentar. E se o comportamento alimentar fosse o único motivo pelo qual se ganha peso, então, ao comer-se menos, ficar-se-ia mais magrinho. Mas a evidência genética aponta completamente na direcção oposta, em que a perda de função deste péptido se correlaciona com um ganho de peso, sem qualquer impacto no comportamento alimentar”, explica Ana Domingos.

Mas, então, surge uma questão: como é que, paradoxalmente, as alterações no NPY que estimulam o apetite podem estar associadas a um IMC mais elevado nos seres humanos sem afectar o comportamento alimentar? E é precisamente a esta pergunta que o estudo recente dá uma possível explicação ao sugerir que a dissipação de energia calórica pode desempenhar um papel mais significativo do que o apetite na manutenção do peso corporal, pelo menos em algumas pessoas.

Ou seja, a investigação revelou que o NPY periférico, libertado pelos neurónios simpáticos (células que integram o sistema nervoso autónomo simpático que ajuda o nosso organismo a reagir a várias situações de perigo ou stress e que, por sua vez, faz parte do sistema periférico), protege contra a obesidade ao manter o tecido adiposo termogénico, que dissipa a energia sob a forma de calor. Especificamente, o NPY periférico “apoia a proliferação de um subconjunto de células progenitoras que se desenvolvem num tipo especial de adipócito [células do tecido adiposo] que queima gordura em vez de a armazenar”, destaca um comunicado da Universidade de Oxford.

Além disso, segundo a FAPESP, os investigadores mostraram que o NPY actua num terço dos nervos simpáticos espalhados pelo corpo, promovendo a produção de novas células adiposas termogénicas.

Gordura branca, bege e castanha

Vários depósitos de gordura contribuem para a regulação do peso corporal e podem ser classificados em três tipos: branca, bege e castanha. Enquanto a gordura branca armazena energia, os adipócitos beges e castanhos queimam-na para produzir calor, dissipando a energia através de um processo fisiológico chamado termogénese sem arrepios.

De acordo com Ana Domingos, por sua vez, a diferença entre a gordura castanha e a bege é uma questão de “ontogenia, ou seja, de onde é que vem cada uma [das gorduras] e em que parte do corpo é que se encontra”. “A castanha é uma gordura que os bebés humanos têm muito e os ratinhos também e que está numa zona do corpo que é próxima das omoplatas” – quando os humanos se tornam adultos, essa gordura castanha desaparece, enquanto nos ratinhos adultos ela permanece, diz. “A bege permanece nos adultos e está localizada noutras áreas do corpo, como na zona subclavicular e ao longo da coluna vertebral.”

“Sabia-se anteriormente que os adipócitos termogénicos [células que armazenam gordura e regulam a temperatura corporal] podiam ter origem em células murais, um tipo de célula que rodeia os vasos sanguíneos arteriais – murais deriva da palavra latina para ‘parede’”, acrescenta o comunicado. E também se sabia, nota Ana Domingos, que algumas células murais podiam sentir NPY porque possuem receptores do NPY – nomeadamente o NPYR1, que “é produzido por uma subpopulação de células murais que são progenitoras do tecido adiposo termogénico” (o tal tecido adiposo que, em vez de acumular, queima gordura porque é um tecido metabolicamente activo, produzindo durante a noite toda a termogénese que é necessária para nos manter quentes).

“O que vimos neste estudo é que, quando os ratinhos estão a dormir, acabam por ter um dispêndio energético muito inferior porque não têm os neurónios a libertar o NPY”, explica a investigadora, acrescentando que os resultados mostram que “o NPY sustenta o metabolismo basal – gasto de energia quando os ratinhos estão a dormir – ao manter a renovação da gordura termogénica”.

A equipa revelou ainda que a libertação do NPY no sistema nervoso periférico se dá em sinapses que estão em contacto com as células murais localizadas ao redor dos vasos sanguíneos infiltrados nos tecidos, células estas que são precursoras do tecido adiposo castanho, sublinha em entrevista à FAPESP Licio Velloso, um dos autores do artigo, investigador do Centro de Pesquisa em Obesidade e Co-morbidades (OCRC) no Brasil.

“Na ausência de NPY fornecido localmente por axónios [uma parte do neurónio] finos que inervam [comunicam actividade nervosa com] os vasos arteriais – de preferência de tamanho médio – os ratinhos tornam-se obesos”, completa o comunicado. E esta obesidade não se deve a um aumento da ingestão de alimentos, mas a uma redução do gasto energético devido a uma menor capacidade termogénica. “O NPY ajuda a proliferação dos progenitores murais dos adipócitos termogénicos; sem o NPY, há menos células que queimam gorduras”, destaca o comunicado, acrescentando ser “provável que este mecanismo se estenda a outras formas de obesidade, uma vez que o estudo indica que os nervos produtores do NPY degeneram com o aparecimento da obesidade induzida pela dieta”.

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O neuropéptido Y em axónios de neurónios simpáticos Peter Yitao Zhu/Universidade de Oxford

Licio Velloso completa ainda, citado pela FAPESP, que, para caracterizar a acção do NPY no sistema nervoso periférico, os investigadores utilizaram ratinhos geneticamente modificados para não expressar o NPY no sistema nervoso simpático, tendo observado que “esses animais ficaram mais obesos e apresentaram dificuldade em manter a temperatura corporal estável quando expostos ao frio e tinham também distúrbios metabólicos, como predisposição a desenvolver diabetes”. “Já os animais com NPY que comeram a mesma quantidade de alimento que os outros apresentaram uma protecção contra a obesidade.”

Uma epidemia moderna

Segundo Ana Domingos, “a obesidade é uma epidemia moderna e compreender a sua base biológica é crucial para desenvolver terapias eficazes que vão para além da mera supressão da ingestão de alimentos”. “As opções de tratamento actuais centram-se principalmente na supressão do apetite, o que muitas vezes leva a uma diminuição compensatória do gasto energético, promovendo um aumento de peso recorrente – mesmo com intervenções farmacológicas modernas” como, por exemplo, os populares medicamentos agonistas dos receptores de GLP-1” (glucagon de tipo 1), refere.

A cientista nota ainda que, “embora a redução da ingestão de alimentos seja importante para o controlo da obesidade, é necessário manter um maior gasto energético para que as terapias sejam eficazes e duradouras”. “Isto é particularmente verdade em certos tipos de obesidade, em que a dissipação de energia desempenha um papel mais crítico do que a ingestão de energia.”

A neurocientista frisa que “é necessário visar esse objectivo, porque nem todos os tipos de obesidade têm origem em excessos alimentares” e que tal “poderia ser alcançado através da manipulação directa de subconjuntos de neurónios simpáticos para queimar gordura, sem suprimir a ingestão de alimentos”.

O facto de o NPY actuar na periferia do sistema nervoso periférico “abre uma nova perspectiva para o desenvolvimento de medicamentos que podem ser mais simples, eficientes e até mais baratos para tratar a obesidade”, diz à FAPESP Licio Velloso, um dos autores do artigo, investigador do Centro de Pesquisa em Obesidade e Co-morbidades (OCRC) no Brasil.

Ana Domingos esclarece também que, à medida que envelhece, é normal uma pessoa ganhar peso – “e não é por comer mais”. “A explicação é exactamente que, à medida que envelhecemos, os neurónios que estão a produzir este péptido [o NPY] – que mantém o tecido termogénico vivo e assegura a sua renovação – vão-se perdendo, não só dentro da cabeça, mas também fora dela, nomeadamente estes neurónios simpáticos, o que faz com que percamos o tecido termogénico. Quando isso acontece, acumulamos gordura branca.”

A investigadora da Universidade de Oxford frisa que este estudo poderá ter aplicação prática no desenvolvimento de medicamentos que actuem no metabolismo basal – algo que ainda não se controla farmacologicamente –, independentemente do comportamento alimentar. “Temos um bocadinho a tendência de chamar aos doentes mentirosos, quando eles dizem que comem pouco, mas ganham muito peso”, diz. A esperança é, portanto, que este estudo e a ciência ajudem a mudar essa forma de pensar.

Ana Domingos, que é especializada na redução da obesidade através da identificação de causas independentes da ingestão alimentar, tinha já chegado anteriormente à conclusão de que existem neurónios no tecido adiposo e células do sistema imunitário relacionadas com a obesidade. Em Outubro de 2017, a cientista portuguesa fez também parte de uma equipa que publicou um estudo na revista Nature Medicine que revelou que há células imunitárias que boicotam a perda de gordura.

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