Águas partilhadas: como a seca e a escassez de água estão a testar relações entre Portugal e Espanha

A Convenção de Albufeira, base legal para a gestão partilhada dos rios luso-espanhóis, celebrou 25 anos. Mas com as secas a agravarem-se, serão as suas regras suficientes? O primeiro de três artigos.

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Vista do rio Douro no seu troço internacional, com Espanha na margem direita do rio e Portugal à esquerda, perto da barragem da Bemposta Michele Curel
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Enquanto o país foi a banhos, a seca regressou, com tendência a agravar-se nas próximas semanas. Segundo dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), no período relativo a Julho de 2024, 9,2% do território português estava em situação de seca severa, com maior incidência no Alentejo e Algarve. Nas regiões espanholas vizinhas da Extremadura e Andaluzia, a situação é condizente: em Tentudia, sul de Badajoz, foi declarada emergência hídrica e impostos limites ao abastecimento de água, enquanto em Málaga a seca já afecta a agricultura e o turismo.

O tom é alarmante, mas a situação podia ser pior — pelo menos, em comparação com os últimos anos hidrológicos. Para o mesmo período em 2023, 48% do território português estava em situação de seca severa a extrema. Desta vez, as chuvas de Abril a Junho travaram cenários mais dramáticos. Mas a simpatia de 2024 foi excepção à regra: os últimos 20 anos têm sido especialmente pouco chuvosos em Portugal, com seis dos dez anos mais secos de sempre registados depois do ano 2000.

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Detalhe de campo seco em Mértola, no sudeste alentejano. A região sofre com altos níveis de stress hídrico e baixa capacidade de retenção de água Michele Curel

A tendência que se vem formando, segundo o observatório da seca do IPMA, é de redução dos valores de precipitação em todas as estações do ano, com excepção do Outono. De ora em diante, as secas serão mais intensas, prolongadas e frequentes.

A Convenção de Albufeira é o acordo que estabelece as bases para a cooperação luso-espanhola na gestão e protecção dos recursos hídricos partilhados entre os dois países. Celebrou no ano passado um quarto de século desde a sua assinatura, a 30 de Novembro de 1998, na cidade de Albufeira, e mantém-se vigente até hoje. Famosamente, a convenção define o regime de caudais a serem mantidos nos rios que fluem de Espanha para Portugal: neste momento, e desde o Protocolo Adicional introduzido em 2008, um regime de caudais mínimos, que Espanha tem de enviar para Portugal para não entrar em incumprimento da lei.

Mas com a seca a diminuir caudais de rio e reservas de água nas barragens com maior frequência e gravidade, a tensão entre os dois países pelo direito à água aumenta. Em 2022, Espanha anunciou que não tinha condições de honrar na íntegra as quotas para os rios Douro e Tejo, quando as albufeiras espanholas atingiram um novo mínimo nesse ano. A questão surge hoje com maior força: será a Convenção de Albufeira, com 25 anos, ainda um instrumento adequado para operar em condições de escassez?

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Parte traseira da Barragem de Cedillo, vista do reservatório, na fronteira entre Espanha e Portugal, no Rio Tejo, em Junho de 2024 Michele Curel

A seca no Sul é “estrutural”, mais que “conjuntural”

Apesar do aumento de eventos de seca e escassez hídrica extremos (distintos, mas interligados) na Península Ibérica, motivado pelas alterações climáticas, há que ter cautela com a classificação de seca histórica. “Quando dizemos ‘precipitação média’, estamos a falar de médias de 30 anos. Meteorologicamente, não existe uma média de cinco anos, ou seja, isso pode ser só uma pequena variação”, explica Afonso do Ó, climatólogo, especialista em Gestão de Risco de Seca e Águas Transfronteiriças e consultor na WWF Portugal.

“Entre 1991 e 95, tivemos ali uns anos que foram terríveis, com faltas de abastecimento de água. O que não voltou praticamente a acontecer, do lado [português], por mais uns anos. Temos de recordar isto, ou seja, relativizar um bocadinho”. Esta seca, aponta o académico, foi um dos catalisadores para as conversações que deram lugar à Convenção de Albufeira em 1998 — embora houvesse outras motivações em jogo.

Também a crise hídrica seguinte, gerada pela seca de 2004-2006, que afectou Espanha e Portugal de Norte a Sul, originou uma reacção forte das populações com repercussões legais: dez anos depois, em 2008, é assinado o Protocolo Adicional à convenção.

Este acordo serviu, sobretudo, para actualizar o regime de caudais, que passou de um regime anual — em que o caudal enviado era medido ao ano, de modo que Espanha só era obrigada a lançar para Portugal o volume de caudal na lei, no cúmulo, uma vez ao ano, para cumprir com os requisitos — para um regime de caudais mínimos semanais e trimestrais. Uma actualização relevante, mas insuficiente para o equilíbrio dos ecossistemas dos rios e ribeiras, considera Do Ó.

“Há esse caudal trimestral, depois há um caudal semanal apenas nalgumas secções do rio, mas esse é bastante mais reduzido”. Este regime permite que “Espanha faça coisas que já deram azo a pequenas catástrofes ambientais”, como “reter a água até ao limite [do prazo], à espera que eventualmente chova mais um bocadinho e, no fim, para cumprirem a convenção, soltar toda a água que está ali”. Ou deixar que os momentos e volumes de descarga, dentro dos valores da lei, sejam decididos “em função do interesse das hidroeléctricas”, conforme as flutuações do preço da energia.

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Vista parcial da Barragem de Cedillo. A placa indica que pode haver “variações inesperadas no caudal do rio” Michele Curel

A solução, aponta Do Ó, passaria pela implementação de um regime de caudais ecológicos nos rios ibéricos partilhados: um regime que simula o comportamento natural do rio, de acordo com a estação do ano e a pluviosidade, tal como sucedia quando não existiam infra-estruturas que permitem controlar o caudal. “Quando chovia mais, [o rio] tinha mais água, depois ia diminuindo lentamente, depois aumentava outra vez … Isto permite a todos os animais e plantas e, portanto, a todos os serviços do ecossistema, adaptarem-se a essa variação, que é natural.”

No Verão, é “normal” não termos praticamente caudal nenhum, sobretudo no sul: “no Guadiana, seus afluentes, em Guadalquivir, os caudais vão quase a zero porque temos uma estação seca muito larga e muito intensa que faz parte do clima. Isto por si só não é uma seca: é a estação seca, é o Verão.” Manter caudais ecológicos seria respeitar essa estrutura. Até porque, mais do que a falta de chuva, para o climatólogo, o problema maior dos ibéricos reside no consumo de água, que não pára de aumentar.

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Amêndoas a crescer à chuva numa quinta privada de 1400 hectares. O amendoal é uma cultura que exige um consumo de água muito intenso Michele Curel

Mas há quem lute por uma gestão dos recursos hídricos compatível com as necessidades ecológicas. Para Alice Pisco, residente em Faro e membro da PAS – Plataforma Água Sustentável, a seca e a escassez de água são velhas conhecidas. “O problema [da falta de água no Algarve] é estrutural e não conjuntural”, embora as respostas o sejam, destaca Pisco. “Parece que os nossos dirigentes estão sempre ‘à espera que chova’”.

Em Coimbra, o agitar das águas e uma queixa à Comissão Europeia

A PAS é uma rede activista que liga vários colectivos ambientalistas nacionais na missão de apresentar soluções sustentáveis para a escassez de água no sul do país. Criada em 2020, num momento em que a seca se agravava novamente e a pandemia atrasava o começo de novos projectos de captação de água para exploração agrícola, a rede participa desde então em consultas públicas sobre propostas semelhantes e iniciativas em defesa do uso sustentável da água.

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Alice Pisco é membro da PAS – Plataforma Água Sustentável e defensora da renaturalização dos sistemas fluviais. Fotografia tirada ao lado da ribeira seca de Tor, em Loulé Michele Curel

E não estão sozinhos nesta luta: o movimento pela defesa da água e dos rios tem crescido, lento mas seguro, em Portugal como em Espanha — e criado redes de solidariedade pelo caminho. Um exemplo disso é a Rede do Tejo, que junta colectivos em defesa do Tejo de ambos os lados da fronteira.

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Alice Pisco visita o agricultor Duarte Reis no seu pomar de laranjas de Verão em Olhão. Reis é membro da Al-Bio - Associação Agroecológica do Algarve, uma associação de agricultores que integra a PAS Michele Curel

Um momento definidor deste crescimento aconteceu no dia 18 de Maio, com o primeiro Encontro Nacional de Cidadania pela Defesa dos Rios e da Água (ENCDRA), que decorreu na Casa da Cultura de Coimbra e reuniu activistas de Norte a Sul de Portugal, do Minho ao Guadiana, para discutir problemas e conjugar esforços. Discussões sobre os temas que marcam o debate ibérico sobre a água marcaram o evento: transvases, caudais, barragens, conservação e renaturalização, esforços de engajamento local e comunitário.

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Paulo Constantino da ProTejo Portugal cumprimenta representantes da Red del Tajo Aranjuez antes do início de uma prova de descida de rio em Torres Novas Michele Curel

O destaque do dia foi para a apresentação da denúncia conjunta à Comissão Europeia (CE), comunicada a 14 de Março pelo colectivo ProTejo e subscrita por 27 organizações portuguesas e espanholas: um documento de 43 páginas, que denuncia o incumprimento da Directiva Quadro da Água (DQA) por Portugal e Espanha à CE pela não implementação de caudais ecológicos na barragem de Cedillo, na zona de fronteira do rio Tejo.

O argumento é o de que, ao fazer vigorar há 25 anos um regime provisório de caudais mínimos “fixados de forma política e administrativa” na Península Ibérica, quando a própria DQA — a legislação europeia sob a qual recaem todos os acordos internacionais de gestão de recursos hídricos dentro da União Europeia — prevê a implementação de caudais ecológicos, Portugal e Espanha estão em incumprimento do direito comunitário da UE. E devem, portanto, lê-se no documento, abandonar “o obsoleto regime de caudais da Convenção de Albufeira” inscrito no Protocolo Adicional e proceder à “definição e implementação rigorosa de regimes de caudais ecológicos”. Caso a queixa seja bem-sucedida, e a CE considerar que esta é uma violação do direito comunitário, Portugal e Espanha terão de actualizar o regime em concordância com a DQA, garantem os subscritores.

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Barragem de Cedillo, construída em 1976. Os dois lados desta barragem ficam em Portugal, mas a extensão do meio fica em Espanha. É a única fronteira internacional que é propriedade privada na Europa - e fecha ao trânsito durante os dias úteis Michele Curel

Caudais mínimos vs caudais ecológicos

Na base da queixa está o artigo 16.º da Convenção de Albufeira, que diz respeito aos "caudais" e ao modo como devem ser geridos entre os dois países. No nº1, lê-se: “As Partes, no seio da Comissão, definem, para cada bacia hidrográfica, de acordo com métodos adequados à sua especificidade, o regime de caudais necessário para garantir o bom estado das águas, os usos actuais e previsíveis e o respeito do regime vigente dos ‘Convénios’ de 1964 e 1968.” O nº5 adiciona ainda que, “até que se defina o regime de caudais a que se refere o nº1”, “aplica-se o constante no Protocolo Adicional a esta Convenção”. Esta indefinição mantém-se até hoje, deixando a expressão "caudais necessários" aberta a interpretação e o regime atrelado ao protocolo de 2008.

No entender de Paulo Constantino, membro do movimento ProTejo desde a sua fundação em 2009, em Vila Nova da Barquinha, os "caudais necessários para garantir o bom estado das águas" são, forçosamente, caudais ecológicos, tal como descrito na Directiva Quadro da Água e na orientação nº31 da Comissão Europeia. Assim, o próprio texto original da Convenção abre caminho a que se mude o regime estabelecido pelo Protocolo Adicional.

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Paulo Constantino, membro-fundador e porta-voz da ProTejo, fotografado junto ao rio Tejo na sua cidade, Vila Nova da Barquinha. O Rio Tejo é o maior rio da Península Ibérica Michele Curel

Mas, afinal, o que são caudais mínimos e ecológicos? E qual é a diferença entre os dois?

“O [caudal ecológico] é aquele que permite a conservação dos ecossistemas e das espécies” ribeirinhas, através da manutenção de um regime de caudais que “represente o regime natural do rio” e que preserve “o bom estado ecológico das águas”, esclarece Paulo Constantino. Estes caudais devem ser contínuos, regulares e constantes, ajustados de acordo com a sazonalidade da estação do ano e a respectiva taxa de variação, calculada em função das condições climatéricas.

Por contraste, “aquilo que existe [hoje] são caudais mínimos, porque: não são caudais instantâneos; não são medidos em metros cúbicos por segundo; não são contínuos; não são regulares”, mas sim caudais que cumprem com os valores mínimos de envio de caudal, definidos administrativamente para cada bacia hidrográfica partilhada, e mensurados por semana e trimestre, para fazer valer o Protocolo Adicional.

“É essa instabilidade que a lei permite”, avança Constantino, “que dá permissão às hidroeléctricas para gerirem a seu bel-prazer [os caudais dos rios]. E elas gerem-nos com uma grande volatilidade”. Um exemplo disso ocorreu em Fevereiro deste ano, quando a EDIA (Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva) simulou um caudal de cheia no rio Guadiana e descarregou, em dois dias, 45 milhões de metros cúbicos de água a partir da barragem de Pedrógão, a mesma quantidade que 150 mil habitantes de Huelva consomem num ano.

Os colectivos subscritores da denúncia destacam ainda que, além do factor "quantidade", a Convenção também introduz o factor "qualidade". O indicador hidromorfológico do bom estado das águas da CE é o regime de escoamento de caudais, que define os objectivos ambientais a manter para as massas de água de modo a evitar a eutrofização em águas paradas. “A nossa queixa [argumenta] que a forma como têm sido geridos os caudais, o facto de não existirem caudais ecológicos, tem conduzido a uma deterioração adicional do estado ecológico das massas de água”, desrespeitando o indicador, conclui o porta-voz da ProTejo.

Além dos marcadores científicos ou dos interesses económicos, para os defensores da mudança legislativa, há valores simbólicos e políticos em jogo. “Por trás [de cada regime de caudais], há um princípio muito diferente da utilização da água por parte dos dois países: [no ecológico], é perceber que a água e os rios são uma espécie de veias do planeta e, portanto, são fundamentais para tudo.” No outro, vinga “uma perspectiva extractivista: vamos cada um sacar o máximo que podemos, dividimos aqui a coisa entre os dois e, depois, se não sobrar nada, é postular e paciência”, afirma Afonso do Ó.

Insuficiência nos mecanismos de mitigação conjunta da seca

Os últimos anos têm sido pautados por secas gravosas na Península Ibérica, mas também por contendas e protestos de ambos os lados da fronteira. Em Fevereiro deste ano, milhares de agricultores espanhóis manifestaram-se em Sevilha, na região de Andaluzia (a “maior potência agrícola de Espanha”, segundo o presidente da junta regional, Juanma Moreno) exigindo mais infra-estruturas de retenção de água para fazer face à seca extrema e propondo uma revisão da Convenção de Albufeira.

Os agricultores de Huelva não são o único grupo a clamar por uma mudança de base, mas o assunto é complexo. Sussurros pedindo para que se mexa na Convenção têm esbarrado em grande resistência política, sobretudo do lado português, adianta Rui Cortes, professor na UTAD, especialista em ecologia de ecossistemas aquáticos e membro do movimento #MovRioDouro. E as quezílias não se cingem à questão dos caudais: a inoperância dos mecanismos conjuntos de mitigação da seca é outra fragilidade a ultrapassar.

No artigo 19.º da Convenção, que diz respeito a "secas e escassez de recursos", é estabelecido que “as Partes coordenam as suas actuações para prevenir e controlar as situações de seca e escassez”, através de “mecanismos excepcionais para mitigar os efeitos das mesmas”. Estes incluem aplicar cortes de abastecimento ou outras medidas de contenção em caso de escassez de água (que deveriam, na teoria, ser sempre comunicadas à outra Parte) ou, no limite, falhar as quotas da Convenção, como já sucedeu no Douro em 2022.

O problema é que “a [CA] define os caudais que devem ser libertados do lado espanhol, mas apenas em situação em que não haja seca”, alerta Rui Cortes. Na prática, “em situação de seca, os espanhóis não são obrigados a libertar [caudais]. Portanto, a Convenção não é aplicável” quando há escassez, “o que não tem sido acompanhado devidamente”. Também as populações espanholas da Extremadura e Andaluzia são prejudicadas pela ausência de limites bem definidos para o caudal de seca. Às descargas erráticas nas barragens de fronteira, junta-se a obrigatoriedade de cumprir um caudal mínimo acima do ecologicamente necessário em épocas de seca extrema.

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Vista da ribeira de Tor, completamente seca, em Loulé Michele Curel

Os mecanismos de co-gestão de situações de seca são competência da Comissão para a Aplicação e Desenvolvimento da Convenção (CADC), o órgão responsável pela monitorização e desenvolvimento da CA. Do seu secretariado técnico fazem parte delegados da Direcção Geral da Água e do Ministério para a Transição Ecológica (MITECO) espanhóis e da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) da parte portuguesa, além de pessoal técnico competente. De momento, o Grupo de Trabalho sobre o Regime de Caudal, Secas e Situações de Emergência da CADC já não está operacional, tendo as suas funções sido “assumidas por outros grupos”, lê-se no site da comissão.

Albufeira, 25 anos depois: do utilitarismo à sustentabilidade

Para compreender o desafio que o agravamento das secas coloca à Convenção, é preciso voltar à base. A Convenção de Cooperação para a Protecção e o Aproveitamento Sustentável das Águas das Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas, título completo do acordo, entrou em vigor a 17 de Janeiro de 2000, dois anos depois da sua assinatura oficial em 1998. Não por acaso, precede, também em dois anos, a criação da Directiva Quadro da Água (DQA) para a UE.

Para o consultor Pedro Cunha Serra, o debate sobre a actualidade da CA deve ser colocado noutros termos: “A Convenção continua a fazer todo o sentido”, até porque “essas convenções não são propriamente documentos com um prazo de validade de 20 ou 30 anos”.

Consultor de engenharia civil e ex-presidente do grupo Águas de Portugal, Cunha Serra acompanhou, desde a primeira hora, as negociações originais para a Convenção de Albufeira e participa nos trabalhos da CADC desde a sua constituição, em 2000. A voz da experiência diz que “essas coisas são como são: não são documentos [de curto prazo]. Mas também não são qualquer coisa de imutável. Eles têm de ser criados, validados, confrontados com os problemas que surgem no dia-a-dia.”

Para o engenheiro e legislador, houve dois motivos principais que impulsionaram a assinatura da Convenção em 1998, segundo escreve na edição de Dezembro 2023 da revista da Associação Portuguesa dos Recursos Hídricos (APRH). Primeiro, estava a ser discutido em Bruxelas o rascunho do que viria a ser a DQA, que previa uma gestão conjunta das bacias hidrográficas partilhadas dentro da UE, para a qual as negociações luso-espanholas viriam a ser um preâmbulo. Segundo, por razões financeiras, visto que Portugal, enquanto beneficiário do Fundo de Coesão, pretendia dedicar parte importante deste envelope ao desenvolvimento de projectos hidráulicos, com destaque para o projecto da mega-barragem do Alqueva.

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A barragem do Alqueva, no rio Guadiana, é a maior barragem e lago artificial da Europa Ocidental. Inaugurada em 2002, nos distritos de Beja e Évora, foi construída para fornecer água para irrigação, energia e turismo Michele Curel

Apesar da seca de 1991-1995 ser apontada como um factor impulsionador para as negociações de Albufeira, Cunha Serra não tem dúvidas, e relembra o historial de convenções ibéricas de gestão de águas partilhadas: o aspecto de maior relevo foi, novamente, a divisão dos recursos entre os países para exploração. Em 1998, “a missão climática, ambiental, estava em segundo plano. Digo isto muito sinceramente.”

Ao mesmo tempo, foi com a Convenção de Albufeira, já cumprindo com as premissas do que viria a ser a DQA, que pela primeira vez neste histórico se colocaram preocupações ambientais no papel. “A convenção é um bom instrumento, mas está por cumprir. Ou seja, aquilo que a própria convenção diz que tem que ser feito não foi feito!”

Dilemas administrativos e entraves à cooperação ibérica

Um exemplo dessa implementação incompleta é a situação dos Planos de Gestão de Região Hidrográfica (PGRH). A DQA estabelece que os Estados Membros têm de assegurar a coordenação de PGRH entre si em geografias de águas partilhadas. Estes têm de ser cumpridos, sob pena de os Estados poderem vir a ser multados no Tribunal Europeu. Mas na prática, a cooperação é escassa. As Administrações de Região Hidrográfica (ARH) reúnem-se regularmente, com resultados opacos: o relatório mais recente disponibilizado no site da CADC refere-se a 2016-21.

Nem sempre foi assim. “As [ARH], de facto, tinham autonomia. E perderam essa autonomia, essa capacitação técnica. Tudo está centralizado na APA, quando devia estar descentralizado pelas bacias”, afirma Rui Cortes, que chegou a fazer parte do conselho da bacia do Douro. “Nós recuámos, quando devíamos estar a melhorar a nossa capacidade de gestão dos recursos hídricos.”

Cortes atribui esse retrocesso a cortes efectivados no tempo da troika no Ministério do Ambiente que nunca foram repostos. “Quando foi o governo Passos Coelho, houve a ideia, que afinal não resultou em nada, de juntar o Ministério da Agricultura com o Ministério do Ambiente, para diminuir a despesa pública”; o resultado foi a “concentração dos serviços [de monitorização da água] na APA” e “um grande desinvestimento” nas ARH.

Também a própria CADC apresenta o mesmo problema. “Na prática, [a CADC] nunca intervém na gestão de crises. Isto é, quando surge algum diferendo à volta da cooperação luso-espanhola, a CADC permanece ‘muda’, enquanto outros actores falam por ela: ONG, cientistas, APA”, sintetiza Amparo Sereno, especialista em Direito do Ambiente e vogal na Associação Portuguesa dos Recursos Hídricos, num artigo de opinião alusivo ao 25.º aniversário da Convenção de Albufeira. “Isto torna a Comissão uma instituição frágil, pouco credível e até desconhecida pela cidadania”.

Uma solução proposta por Sereno seria transformar a CADC numa comissão técnica permanente independente, liderada por cientistas em vez de representantes estatais, como sucede com rios partilhados por mais países. Cunha Serra concorda: “Se me perguntassem há 20 anos”, diria: Claro que não é necessário! A Comissão do Danúbio tem o seu Secretariado Técnico Permanente, mas aí são 7 ou 8 Estados.” Nós, somos dois. “Agora, à luz daquilo que tem vindo a acontecer”, “justificava-se plenamente.”

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Barragem de Cedillo no rio Tejo, na fronteira entre Espanha e Portugal Michele Curel

As vozes pela mudança multiplicam-se, vindas de vários sectores, mas têm encontrado resistência do poder político: no ano passado, Duarte Cordeiro, então ministro do Ambiente de António Costa, afirmou que Portugal “não está disponível” para rever a Convenção, porque “numa renegociação, sairia sempre prejudicado”.

“Há um medo geral, sobretudo em Portugal”, aponta Afonso do Ó, de tocar na Convenção seja de que maneira for. “Houve políticos que nos disseram frontalmente: nem pensem que vamos pedir a revisão”. E porquê esta atitude? “Quando os caudais mínimos foram estabelecidos, usaram-se médias de precipitação de 1960 a 1990, as mais recentes que tínhamos. Obviamente, se agora formos usar médias de 1990 a 2020, os valores são bastante mais baixos e, portanto, Espanha vai ser autorizada a reduzir esses caudais mínimos. Acho que é a razão de fundo para haver uma rejeição política.”

“O que nós dizemos, e o que a maior parte dos movimentos ambientalistas diz, é que não é preciso renegociar a convenção: só é preciso acabar de a cumprir”, finaliza. Em 1998 e 2008, os efeitos da seca prolongada propulsionaram avanços legislativos importantes. Em 2024, poderá o interesse estratégico suplantar o medo de ‘mudar para pior’?

Um novo acordo bilateral a caminho?

Muitos não acreditavam, mas é mesmo verdade: Portugal vai abrir mão do Alqueva. No dia 5 de Agosto, a Ministra do Ambiente Maria da Graça Carvalho anunciou que Espanha vai passar a pagar 2 milhões por ano a Portugal por captações de água no Alqueva. O acordo, negociado entre Graça Carvalho e a sua homóloga espanhola, Teresa Ribera Rodríguez, deverá ser assinado oficialmente no dia 26 de Setembro, em Madrid. Este incluirá também um conjunto de medidas referentes ao Tejo e Guadiana, entre elas, a garantia do cumprimento de caudais ecológicos, assegura a ministra.

Há muito que o armazenamento de água na mega-barragem do Alqueva, a maior da Europa, é cobiçado por agricultores espanhóis. Mas o assunto é contencioso, encontrando maior oposição junto dos agricultores portugueses, que temem que uma expansão do abastecimento de água para Espanha aumente a competição, e de activistas, que se opõem a mais um incentivo ao consumo de água, especialmente para regadios, em tempos de seca e escassez.

Há mais de vinte anos que se sabe que estas captações acontecem ilegalmente no Alqueva e afluentes do Guadiana, à margem do estipulado na Convenção de Albufeira. O executivo de Luís Montenegro diz querer mudar a situação, e a APA e a EDIA, garante a Graça Carvalho, têm “feito o seu trabalho” para georeferenciar os furos ilegais.

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Captação de água no rio Guadiana. Os agricultores utilizam a água do rio para irrigação. Algumas destas bombas são legais e outras não. Esta é uma bomba de água legal que vai regar uma das parcelas de uma propriedade de 1300 hectares que aluga parcelas aos agricultores Michele Curel

O valor de 2 milhões ao ano corresponde à anunciada "factura" que Espanha teria de pagar a Portugal pelos anos de uso ilegal, mas não inclui o que está para trás; isto é, o valor será pago pelos usos presentes e futuros, que passarão a ser permitidos, e não pelos usos passados, normalizando a existência de captações junto a barragens dos dois lados da fronteira.

“Foi pura e simplesmente fazer a monitorização do que é que do lado espanhol estava a ser gasto, fazer as contas, e Espanha, como é natural, está disposta a pagar aquilo que nos deve na água do Alqueva”, disse Maria da Graça Carvalho. O valor “não é exorbitante”, tendo em vista a dimensão espanhola, mas também “não se trata de uma cedência” negocial, assegura a ministra. Os detalhes do novo acordo, com desfecho anunciado para Setembro, ainda não são conhecidos, mas foram levantados os temas do aproveitamento energético e novas pontes de ligação sobre os rios na fronteira.

Nem todos estão de acordo com a legalização de novas captações no Alqueva. Num manifesto elaborado antes das últimas eleições legislativas de Março por várias associações de defesa da água (nas quais se incluíram a #MovRioDouro, a ProTejo e a PAS), os signatários pugnavam por 15 reivindicações pelos rios e pela água, com a exigência de “evitar o recurso a novas fontes de captação” e de “fiscalizar, de forma eficaz e efectiva, captações (subterrâneas e superficiais) para qualquer tipo de uso”.

Também os agricultores portugueses denotam preocupação, mas por temerem um aumento da competição pelo uso de água do Alqueva para regadios, numa rede de abastecimento que já conta com um vasto número dos chamados "utilizadores precários", aqueles fora da regularidade, que não param de aumentar em número e em distribuição territorial.

Diogo Vasconcelos, presidente da AJASUL, associação de agricultores e produtores agro-pecuários do Sul de Portugal, com sede em Évora, não tem dúvidas quanto ao sucedido. “O que eu acho que tem de acontecer é, antes de expandir o Alqueva seja para onde for, é pôr todos os precários dentro do perímetro. E ver: bom, temos água para todos, os que aqui estão? Temos. Se não chega, nós não podemos andar a expandir o Alqueva até ao infinito e arriscarmo-nos a ficar sem água. Não faz sentido nenhum.”

O caminho para esta nova acção bilateral já vinha sendo trilhado com o protocolo para a captação do Pomarão. O objectivo foi o de legislar uma situação a que Portugal fechava os olhos há duas décadas: a captação ilegal de Bocachança, retirada à superfície mesmo a seguir à barragem de Chança, que serve o abastecimento de Huelva e dos regadios andaluzes. Ali, secas consecutivas competem com as necessidades do famoso "mar de plástico", a extensão quilométrica de estufas a forrar o território de branco.

Pomarão: cooperação ibérica ou “paradigma extractivista”?

As manhãs no Pomarão começam sempre pacatas. A pequena aldeia alentejana do concelho de Mértola abre os olhos para um campo verde-seco, o silêncio a imperar sobre o calor estival, bem conhecido das gentes do Baixo Alentejo. É ali, junto à velha aldeia ribeirinha, que o rio Chança, seu afluente, se junta ao Guadiana, correndo por baixo da Ponte Internacional do Baixo Guadiana que une a fronteira entre Portugal e Espanha.

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Vista da Formoa do outro lado do rio Guadiana Michele Curel

A pouco mais de 2 quilómetros de distância, o silêncio dá lugar ao zumbido mecânico da captação de Bocachança. Lá, o tom da água é mais esverdeado. E, de volta ao Pomarão, o semblante dos habitantes é mais confuso. Questionados à mesa do café sobre um novo projecto perto da sua margem, ninguém faz ideia de nada.

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A captação de Bocachança, no lado espanhol do Rio Chança, foi construída na década de 1970 e legalmente deveria ter operado apenas até 2003, data da conclusão da barragem de Chança. No entanto, permanece operacional até hoje Michele Curel

“O projecto que prevê um novo sistema de captação de água perto da aldeia do Pomarão será uma captação que visa reforçar as afluências de água à albufeira de Odeleite”, no concelho de Castro Marim, “cuja água será depois utilizada para abastecimento de populações e para rega agrícola na região algarvia”, explica Sara Correia, técnica da associação ambientalista Zero.

Este desvio implicará ainda a construção de um túnel com cerca de 40 quilómetros de extensão para transporte da água do Pomarão até à barragem de Odeleite. Ademais, perto do local onde está prevista a construção da captação “já existe, desde a década de 1970, a captação espanhola de Bocachança que, legalmente, só deveria ter funcionado até 2003, data de conclusão da barragem do Chança, mas permanece até hoje operacional.”

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Vista da barragem de Odeleite no Algarve Michele Curel

A APA emitiu um parecer técnico favorável à captação do Pomarão para reforço do abastecimento da água no Algarve após a conclusão de um estudo de impacto ambiental da consultora Nemus, em que os indicadores de actividades económicas e emprego na fase de exploração estão avaliados como ‘positivos, muito significativos’ e os indicadores ambientais na fase de construção do projecto, do impacto no clima à hidrogeologia, estão na sua maioria avaliados como ‘negativos, pouco significativos’ a ‘significativos’.

A Plataforma Água Sustentável (PAS) participou da consulta pública do projecto. No documento, expressa a posição de que “esta decisão, que tem naturalmente o apoio de alguns sectores agrários, vai ao arrepio das conclusões de estudos e decisões europeias, nomeadamente a DQA”, ao não valorizar a utilização sustentável da água do Guadiana e ao não elaborar “estudos comparativos com outras soluções mais eficientes” para Odeleite, havendo “falta de rigor na avaliação”.

A PAS classifica a acção como “o desgoverno da pouca água que temos” e destaca como impactos negativos do projecto o risco de “prejudicar, ou mesmo extinguir os ecossistemas dependentes dos caudais excedentários que se pretendem captar” e o aumento da “salinização já existente no Guadiana” para uma garantia efectiva de pouca água, “já que todas as previsões apontam para a continuidade de baixas precipitações”.

Contactada para comentários a esta reportagem, a APA recusou entrevista, por “não considerar o pedido oportuno.”

Os avós de Albufeira: das barragens às convenções

Quem depende das reservas de água para rega conta outra versão da história. Para Diogo Vasconcelos, o que se passa no sul do país “é uma gravíssima falta de água, portanto, nós temos obrigatoriamente de reter a água que passa nos nossos rios para usarmos quando não temos”. O empresário considera que “vamos ter de apanhar a água onde ela está e levá-la para onde ela não existe, isto vai ter que ser feito mais cedo ou mais tarde.”

Afonso do Ó discorda e considera a construção de novas barragens “uma péssima ideia”. “É óbvio que as barragens que nós temos, a maior parte delas, fazem falta”, mas neste momento o potencial hidráulico — definido pelo desnível do rio, o elemento que “gera a capacidade de reter água e de produzir electricidade através da descarga” — são condições praticamente esgotadas na Península Ibérica. No Algarve, “há capacidade de armazenamento para o dobro das necessidades”, sinaliza Alice Pisco. “O problema é que não chove e a terra desertifica-se.”

Não se pode contar a história dos tratados dos rios ibéricos, cujo legado a CA herda, sem a da construção das centrais hidroeléctricas. A primeira convenção deste tipo é tão antiga quanto os últimos marcos de fronteira. Mas o momento fundacional da simbiose data de 1927, quando “Espanha entendeu que não devia avançar com o projecto de Ricobayo”, pioneiro da produção hidroeléctrica na Europa, “sem chegar a um entendimento com o governo português sobre o potencial energético da bacia do Douro”, esclarece Cunha Serra.

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Paisagem ao redor de Cedillo. As infra-estruturas hidroeléctricas impactam os rios, mas também as paisagens em volta, pois a energia eléctrica de alta tensão tem que ser levada para as cidades, vilas e cidades, em alguns casos, a longas distâncias Michele Curel

A partilha foi feita, mas a construção das barragens subsequentes, os famosos "Saltos do Douro", não avançou como se previa, devido ao despoletar da Guerra Civil Espanhola. Com o triunfo de Franco, o ditador revelou-se um grande impulsionador destas obras, e é durante a ditadura franquista que são construídas grande parte das barragens ainda hoje activas no território. Portugal acompanhou a tendência, com Salazar, apoiado pela União Eléctrica Portuguesa, a tentar compensar as perdas do isolamento internacional. Assim, em 1964 e 1968, surgem dois importantes acordos de partilha — ambos citados no texto da CA.

“Ficou decidido que os espanhóis iriam ficar com o Tejo, Portugal ficava com o Guadiana, Espanha ficava com o Chança, o Lima tinha que ficar para Portugal e o Minho iria ser repartido entre os dois Estados, para acerto de contas”, conta Cunha Serra.

A mega-barragem do Alqueva começou a ser construída ainda em meados de 1970, mas logo depois foi suspensa: era primeiro-ministro Mário Soares e o país entrou em bancarrota. Em 1993, o projecto é retomado, com a previsão da chegada dos fundos europeus necessários, e actua como factor impulsionador para a Convenção de Albufeira.

Por tudo isso, Paulo Constantino afirma que “enquanto a Convenção de Albufeira se mantiver [atrelada ao Protocolo Adicional], mantemo-nos agarrados a uma perspectiva passadista e franquista — não quero dizer fascista… mas dos tempos do fascismo, sem dúvida, salazarista ou franquista — do conceito de partilha da água.”


Esta série transfronteiriça de reportagens ambientais aprofundadas foi produzida pelos jornalistas Luzia Lambuça (Parte I), Daniel Borges (Parte II) e Emerson Mendoza Ayala (Parte III) e pela fotógrafa Michele Curel, com o apoio do JournalismFund Europe.

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