Meus queridos inimigos

Não nos podemos dissociar de uma natureza da qual somos parte integrante e que nos conecta com todos os seres vivos com quem partilhamos este planeta.

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André Carrilho
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Escrevo na esperança de resolver esta relação complicada que já dura há demasiado tempo. Já percebemos que as nossas diferenças são irreconciliáveis e, uma vez que ninguém vai a lado nenhum, algo tem de mudar. Como tal, proponho uma espécie de trégua que nos permita reduzir o tempo que estamos a perder com esta batalha perpétua. Sugiro que nos afastemos lentamente até percebermos exactamente a distância que nos permite tolerar a presença uns dos outros. Assim, ninguém precisa de se deslocar um centímetro a mais nem a menos do que o estritamente necessário. Vocês aí, eu aqui, separados pela medida certa que permite a nossa coexistência.

Esta podia ser a carta que alguns animais escreveriam nas suas disputas de território. Na ausência de polegares oponíveis e de sistemas cognitivos mais complexos, tudo acaba por ser mais tácito. É o chamado “efeito do querido inimigo”, um fenómeno comportamental observado em diversas espécies. O princípio é relativamente simples: um animal defende o seu território contra competidores, mas, quando existem vizinhos igualmente territoriais, isto pode gerar um estado colectivo de defesa permanente que consome tempo e energia a todos. Em vez disso, reconhecer e tolerar os vizinhos acaba por ser mutuamente benéfico e evolutivamente vantajoso, pois permite conservar recursos que podem ser cruciais à sobrevivência. Assim, com olás cordiais e olhares atentos, os queridos inimigos acenam, mas sem apertos de mão.

Não é difícil ver os paralelismos entre o efeito do querido inimigo e o comportamento humano. Por vezes, a melhor forma de evitar o conflito é preveni-lo. Mas o que acontece quando os territórios têm de ser cruzados e até coabitados? Porquê ultrapassar a zona que delimita as fronteiras quando seria muito mais fácil manter uma distância de segurança? Não seria muito mais simples para todos se cada um se resignasse ao seu espaço? Esta é a consequência perversa do efeito do querido inimigo enquanto analogia aplicada às interacções humanas. Apesar da utilidade evolutiva, a mesma estratégia pode tornar-se um entrave ao desenvolvimento e inovação, impedindo que lados opostos descubram a virtude que se esconde no meio.

Cientistas e jornalistas não são inimigos. Antes pelo contrário, têm muitas coisas em comum, a começar pelo apreço por factos e pela busca pela verdade. Ambos são comunicadores à sua maneira e, apesar de nem sempre terem a mesma audiência, querem disseminar o conhecimento. Mas não foram treinados da mesma forma e trabalham com processos distintos.

Por vezes, esta diferença resulta num braço-de-ferro em que o detalhe e a precisão exigidos pela ciência colidem com a abrangência e o tratamento editorial fundamentais ao jornalismo. Outras vezes, são as diferentes visões acerca do que é relevante ou impactante que contribuem para um certo distanciamento profissional. Podíamos aceitar que cada um tem o seu papel e que compete ao cientista fazer ciência e ao jornalista comunicá-la ao grande público. Podíamos reconhecer que estes dois mundos são simplesmente demasiado diferentes para serem totalmente conciliados. Podíamos abraçar a utilidade do conceito de “queridos inimigos” que trabalham em territórios contíguos, mas que só se encontram ao de leve nas fronteiras. No fundo — até porque este texto é escrito por um biólogo —, podíamos ter mantido cada macaco no seu galho. Se o tivéssemos feito, o Diário de Um Cientista nunca teria acontecido.

O cientista em mim diz-me que é factual classificar este projecto como comunicação de ciência, mas a nuance que aprendi a apreciar com os meus colegas jornalistas mostra-me que isto seria profundamente redutor. O Diário de Um Cientista foi uma experiência no verdadeiro sentido da palavra. É o culminar de uma parceria entre duas instituições que decidiram arriscar e unir-se na ambição de fazer chegar a ciência ao maior número possível de pessoas. É o resultado de colocar estilos, abordagens e perspectivas distintas num tubo de ensaio sem saber o que esperar, mas com a expectativa de desencadear uma nova reacção. É o produto de um desenho experimental que reuniu profissionais de áreas tão diversas na mesma sala para reinventar um processo. Mas, mais do que tudo, foi e continua a ser uma enorme aprendizagem para todos os que participaram e que tiveram a coragem de sair da sua zona de conforto e caixas prefabricadas para criar algo novo.

Seria desonesto dizer que não existiram desafios, mas a missão partilhada de levar a ciência ao grande público transformou problemas em soluções, muitas das quais nunca tinham sido testadas. O resultado foram 26 páginas de um diário sobre ciência e 18 episódios de um podcast que explora o lado humano de quem faz investigação. Nesta viagem épica pela natureza, foram os cientistas que nos mostraram os encantos da biodiversidade, mas foram os jornalistas que nos guiaram pelos trilhos da comunicação.

Este diário termina hoje com a ilustração que une as histórias que foram contadas ao longo deste mês. Numa celebração da multidisciplinaridade que une a arte e a ciência, o André Carrilho partilha connosco o seu olhar sobre este projecto. Não é fácil ficar indiferente ao impacto visual da sua criação, mas apenas quem leu as páginas deste diário consegue ver os tesouros que se escondem subtilmente nas manchas peculiares das vacas ou nas silhuetas dos coelhos-fantasma que se vêem ao fundo. O resultado final é uma lembrança de que não nos podemos dissociar de uma natureza da qual somos parte integrante e que nos conecta com todos os seres vivos com que partilhamos este planeta — por vezes, até de formas tão inesperadas como os líquenes, que não só ilustram estes diários digitais e de papel, mas também os “diários de pedra” que alguém desenhou no Vale do Côa há milhares de anos.

Os 26 objectos de estudo dos cientistas do Biopolis-Cibio que vemos espalhados ao longo desta ilustração já foram apresentados, um a um, nas páginas do PÚBLICO durante este mês. Mas a vida que ganham quando se interligam no mesmo universo serve para demonstrar que, por vezes, o todo é maior do que a soma das partes. E o Diário de Um Cientista, que juntou cientistas, jornalistas, artistas, designers, infográficos, comunicadores, tradutores e sonoplastas para derrubar fronteiras na comunicação de ciência, é a prova disso.