Culturas intensivas sugam a água de Alcácer do Sal e nem a Rede Natura a protege

Num território que até 2015 estava coberto de povoamentos de pinheiro-manso, montado de sobro, crescem as explorações agrícolas sedentas de água e os empreendimentos turísticos.

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As herdades ao redor estão a ser exploradas para agricultura intensiva, causando problemas com a água. Na imagem, plantações de arroz NFS Nuno Ferreira Santos
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Plantação de pêra-abacate NFS Nuno Ferreira Santos
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As herdades ao redor estão a ser exploradas para agricultura intensiva, causando problemas com a água NFS Nuno Ferreira Santos
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O megaprojecto de pêra-abacate previsto para Alcácer do Sal foi chumbado mas este era apenas mais um em vários que já estão em laboração numa zona que está classificada como Rede Natura 2000. Além da pressão sobre a biodiversidade, estes projectos, a que acrescem os turísticos, são grandes consumidores de água, numa zona que tem sido vergastada pela seca. As culturas intensivas sentem-se respaldadas por estarem sobre o maior aquífero ibérico, mas até este já está a ser exaurido. Até quando aguentará a sangria?

Em Julho, o PÚBLICO noticiou as centenas de críticas e preocupações que o projecto, que tinha estado em consulta pública, tinha suscitado. Em Agosto, a Comissão da Avaliação de Impacto Ambiental, liderada pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo (CCDR-Alentejo), deu parecer desfavorável, noticiou o Expresso. Assim, o mais recente projecto de instalação de uma cultura intensiva em plena Rede Natura 2000, no concelho de Alcácer do Sal, pela empresa Expoente Frugal Lda., do grupo Aquaterra, que propunha a plantação de 481.493 árvores de pêra-abacate (Persea americana Mill), ficou pelo caminho.

As cerca de 1200 participações, nomeadamente de várias organizações de ambientalistas e de cidadãos em nome individual, na consulta pública do projecto de Reformulação do Projecto Agro-Florestal das Herdades de Murta e Monte Novo que a Expoente Frugal pretendia instalar em 658 hectares, terão pesado no parecer desfavorável decidido pela CCDR-Alentejo.

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Plantação de pêra-abacate

Não foi o primeiro parecer desfavorável aplicado a este tipo de cultura no Sul do país. Em Abril de 2021, a CCDR-Algarve deu parecer negativo a um projecto agrícola de produção de abacates, numa área de 128 hectares, localizado em Lagos. A Comissão de Avaliação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) justificou a não-aprovação alegando os “impactos ambientais negativos, muito significativos, directos e indirectos, de magnitude elevada, não minimizáveis ao nível dos recursos hídricos, da biodiversidade e das alterações climáticas” resultantes de uma plantação que consome entre 5600 e 6500 metros cúbicos (m3) de água por hectare. Mas muitas outras seguiram em frente.

Contudo, o impacto deste tipo de culturas intensivas no concelho de Alcácer do Sal não se circunscrevia apenas aos abacates nas Herdades da Murta e Monte Novo. Na zona envolvente estão concretizados outros empreendimentos agrícolas: Herdade da Batalha (citrinos), Exploração da LogoFruits (mirtilos), Herdade do Monte Novo (hortícolas), Herdade das Texugueiras Norte (pêra-abacate), Herdade das Texugueiras Sul (produtos hortícolas), Herdade da Comporta (produtos hortícolas), Herdade do Mar (produção agrícola e pecuária), Herdade da Asseiceira (produção leiteira e agrícola), Projecto Agro-Florestal LSM (abacates) e Herdade do Vale Gordo (produção de relva). E ainda vários empreendimentos turísticos: Hotel-Apartamento Comporta Village, Aldeamento Turístico Casas da Comporta, Aldeamento Turístico Herdade de Montalvo, Hotel Apartamento Resort Outeirão, Cocoon Eco Design Lodges da Quinta do Sossego.

Impactos na Rede Natura

Os efeitos cumulativos destes empreendimentos agrícolas e turísticos é revelador de como o boom do tipo de investimentos realizados no concelho de Alcácer do Sal, sobretudo depois de 2015, veio afectar o solo, os recursos hídricos e a biodiversidade em plena Rede Natura 2000. A área que já ocupam na Zona Especial de Conservação Comporta-Galé aproxima-se, neste momento, dos seis mil hectares. Comparativamente, os tão propalados projectos de culturas em estufa e estufins no Perímetro de Rega do Mira, em Odemira, preenchem uma área com 1600 hectares.

“Esta dinâmica espelha o que tem vindo a acontecer nas áreas de Rede Natura 2000 em Portugal”, salienta a organização ambientalista Zero, no parecer que elaborou para o projecto agro-florestal da Herdade da Batalha, onde foram dispostas 342.216 tangerineiras de tangerinas (Citrus reticulata) sem caroço e com casca fina, em cerca de 544 hectares. É outra das grandes culturas consumidoras de água — entre 6400 e 7600m3 por hectare.

O projecto apresentado pela Azul Empírico, Lda., empresa de prestação de serviços na área da produção de frutos tropicais e subtropicais, também do grupo Aquaterra, foi aprovado pela mesma entidade que deu parecer desfavorável ao projecto dos abacates, a CCDR-Alentejo. O grupo Aquaterra adquiriu no concelho de Alcácer do Sal as herdades de Monte Novo e Murta, com uma área de 2402,10 hectares e a Herdade da Batalha com 2649,74 hectares, embora o promotor refira que só pretenda ocupar, nas três explorações, 1202 hectares.

A Zero criticou a “luz verde” da CCDR-Alentejo, que abriu caminho à instalação de uma “monocultura de citrinos em plena Zona Especial de Conservação (ZEC) da Comporta-Galé”.

João Paulo Girbal, residente no aldeamento turístico Herdade de Montalvo, descreve a situação crítica em que se encontra o território onde estão a crescer as explorações baseadas nas culturas intensivas: “Toda a zona destruída com as novas explorações agrícolas é Rede Natura 2000”, frisando que “muito pouco do que se vê agora existia em 2016”. E para reforçar o seu argumento exibe ao PÚBLICO imagens aéreas, do antes e depois da instalação dos novos empreendimentos agrícolas, com uma crítica ao que considera um absurdo: “Tudo isto (a implementação de projectos imobiliários e de agricultura) foi permitido depois de o território passar a ser considerado Rede Natura.”

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O açude da Murta é um importante lugar de biodiversidade e associações como o GEOTA temem que possa secar por causa destes projectos

Carlos Dias Alves, também residente na Herdade de Montalvo, perante o cenário descrito por Paulo Girbal, incide a sua crítica no uso descontrolado dos recursos hídricos: “Nós estamos no faroeste. Há uma entidade que licencia captações e depois não fiscaliza a sua utilização.” André Matoso, director de departamento da Administração da Região Hidrográfica do Alentejo, IP (ARH-Alentejo), confirma: “A fiscalização é escassa, nós temos de assumir, não é nenhuma vergonha.”

Quanta água há no subsolo?

O nível piezométrico da massa de água na bacia do Tejo-Sado/Margem Esquerda tem vindo a baixar, mas “o número de furos, assim como a profundidade da captação, tem vindo aumentar” e, neste momento, “não se sabe como está o aquífero”, acrescenta Dias Alves.

As diversas leituras sobre o volume de água subterrânea presente na bacia do Tejo-Sado/Margem Esquerda são contraditórias. A discussão sobre as culturas intensivas em Alcácer do Sal na Comissão de Ambiente da Assembleia da República, a 19 de Julho de 2022, é reveladora da divergência de posições sobre os recursos hídricos existentes neste concelho do litoral alentejano. Depois de ter consultado um estudo hidrogeológico da bacia do Tejo-Sado/Margem Esquerda, Manuel Duarte Pinheiro, professor no Instituto Superior Técnico (IST), que foi ouvido nessa comissão parlamentar, disse ter concluído que, “ao longo de três, cinco e dez anos, o nível piezométrico na captação, em vários pontos do aquífero, baixou 10, 20 e, nalguns pontos, até 80 metros”, forçando à extracção de água a maior profundidade, pormenor que envolve o consumo de mais energia. Pelas suas contas, no território da Rede Natura 2000, em Alcácer do Sal, estariam abertos nesse ano — 2022 — 130 furos para captação de água.

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Situando o fenómeno no território coberto pelas novas explorações agrícolas em Alcácer do Sal, Duarte Pinheiro admitia que o consumo total de água nas explorações agrícolas já referidas pudesse atingir seis milhões de metros cúbicos/ano. E, em momentos de stress hídrico, as necessidades poderiam ser superiores. “Estamos a falar de um consumo directo equivalente à satisfação das necessidades de mais de 100 mil pessoas”, acrescentou o professor do IST.

José Godinho Calado, director da Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Alentejo, que, entretanto, transitou para director regional do Alentejo do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), considerou que, apesar de “ser difícil” repor os lençóis freáticos no litoral alentejano, a zona de Setúbal “parece ter boas condições de armazenamento de água subterrânea”. Desta forma, “não será neste momento problemático” assegurar água aos equipamentos agrícolas e turísticos que existem em Alcácer do Sal, frisando que importa garantir “um bem que nos é fundamental, que são os alimentos”.

Por sua vez, André Matoso disse que Alcácer do Sal está sobre um dos maiores aquíferos da Península Ibérica, com cerca de 6900 quilómetros quadrados, e que a disponibilidade hídrica subterrânea do Tejo/Sado “é de 820 milhões de metros cúbicos e são retirados 423 milhões de metros cúbicos por ano", um volume de água que assegura os diversos consumos. “Portanto, todos os consumos andam à volta de metade das disponibilidades”, afirmou. No mesmo registo se pronunciou Vítor Proença, presidente da Câmara de Alcácer do Sal. “Há água suficiente até para mais produções e para mais explorações." E repete: “Há água em abundância de acordo com as análises que chegam ao município.”

Muito consumo para pouca chuva

No entanto, a autarquia a que preside tem realizado ao longo dos últimos anos campanhas de poupança de água junto da população para que esta adopte outro tipo de comportamentos em relação aos recursos hídricos: “A água é um recurso finito… Todas as gotas contam”, foi a mensagem de uma das últimas campanhas de sensibilização. Alcácer do Sal é o concelho que apresentou nos últimos oito anos os valores mais baixos de precipitação atmosférica na região do Alentejo.

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Uma nota técnica elaborada pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e relativa à massa de água da bacia Tejo-Sado/Margem Esquerda, onde se insere o concelho de Alcácer do Sal, diz que a “precipitação tem diminuído significativamente nos últimos anos”. Desta forma, as disponibilidades hídricas subterrâneas “podem não conseguir garantir o volume de água aos usos já existentes”.

E mesmo com os eventos pluviosos significativos que, entretanto, ocorreram, os níveis da água subterrânea não conseguiram recuperar”, enquanto os volumes captados “continuam elevados ", adverte a APA, após a monitorização do nível piezométrico realizada entre 2022 e 2023.

Francisco Vacas, presidente da Associação dos Agricultores de Alcácer do Sal, retratou ao PÚBLICO as consequências da extracção de água: espécies como o pinheiro-manso e sobreiro “estão a sofrer as consequências”. E explica porquê: “O rebaixamento dos níveis piezométricos retirou humidade ao sistema radicular das árvores, que entraram em stress hídrico e estão a secar.” O pinhão deixou de ser uma mais-valia e os sobreiros passaram a dar pior cortiça. Havia seis fábricas de descasque de pinhão em Alcácer do Sal, agora não há nenhuma.

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“Deixámos de ter pinhão há meia dúzia de anos, quando a produção do ouro branco, como lhe chamávamos, nos facultava um bom rendimento anual, que agora está reduzido a zero”, explica, por sua vez, Luís Gouveia Fernandes, proprietário da Herdade da Considerada. Cerca de 80% da sua propriedade era pinhal-manso. “Tinha gado, mas já não tenho. Olhe! Vou fazer batata”, conclui o agricultor.

O PÚBLICO solicitou um conjunto de esclarecimentos à Câmara de Alcácer do Sal, ao grupo Aquaterra e à CCDR Alentejo, mas não obteve resposta.