Cientistas no Chile questionam se a Antárctida atingiu um ponto sem retrocesso

“O que acontece na Antárctida não fica na Antárctida”, alertam cientistas. A Antárctida está a mudar mais depressa do que se esperava, dizem num comité científico que se realiza esta semana no Chile.

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Um pinguim-de-Adélia sobre um bloco de gelo derretido perto da estação francesa de Dumont díUrville, na Antárctida Oriental, em 2010 REUTERS
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Cerca de 1500 académicos, investigadores e cientistas especializados na Antárctida reuniram-se no sul do Chile para a 11.ª conferência do Comité Científico para a Investigação Antárctica, esta semana, para partilhar as mais recentes investigações sobre o vasto continente branco. Quase todos os aspectos da ciência, da geologia à biologia, da glaciologia às artes, foram abordados, mas uma mensagem comum atravessou a conferência: a Antárctida está a mudar mais depressa do que se esperava.

Os fenómenos meteorológicos extremos no continente coberto de gelo deixaram de ser hipóteses para passarem a ser relatos de investigadores, em primeira mão, sobre chuvas intensas, ondas de calor e efeitos Foehn (ventos fortes e secos). Estes fenómenos climáticos extremos levaram ao derretimento maciço de gelo, à ruptura de glaciares gigantes e a condições meteorológicas perigosas com implicações globais.

Com dados detalhados de estações meteorológicas e de satélites que datam apenas de há cerca de 40 anos, os cientistas interrogam-se se estes acontecimentos significam que a Antárctida atingiu um ponto de viragem, ou seja, um ponto de perda acelerada e irreversível de gelo marinho do manto de gelo da Antárctida Ocidental.

“Há incertezas sobre se as observações actuais indicam uma queda temporária ou um mergulho descendente (do gelo marinho)”, disse Liz Keller, especialista em paleoclima da Universidade Victoria de Wellington, na Nova Zelândia, que liderou uma sessão sobre a previsão e detecção de pontos de ruptura na Antárctida.

As estimativas da NASA indicam que o manto de gelo da Antárctida tem gelo suficiente para aumentar o nível médio global do mar até 58 metros. Estudos demonstraram que cerca de um terço da população mundial vive abaixo dos 100 metros verticais do nível do mar.

Embora seja difícil determinar se atingimos um “ponto de não retorno”, Liz Keller diz que é evidente que a taxa de mudança não tem precedentes. “Poderíamos ver o mesmo aumento de CO2 ao longo de milhares de anos, e agora aconteceu em 100 anos”, disse a especialista em paleoclima.

Mike Weber, um paleo-oceanógrafo da Universidade de Bona, na Alemanha, especializado na estabilidade do manto de gelo antárctico, afirma que os registos de sedimentos que datam de há 21.000 anos mostram períodos semelhantes de derretimento acelerado do gelo.

Segundo Weber, o manto de gelo já sofreu uma perda de massa acelerada semelhante pelo menos oito vezes, com a aceleração a começar ao longo de algumas décadas, o que dá início a uma fase de perda de gelo que pode durar séculos, levando a um aumento dramático do nível do mar em todo o mundo.

Weber diz que a perda de gelo aumentou na última década, e a questão é saber se já se iniciou uma fase de séculos ou não. “Talvez estejamos a entrar nessa fase neste momento”, disse Weber. “Se estivermos, pelo menos por agora, não haverá forma de a parar”.

Manter as emissões baixas

Embora alguns afirmem que as alterações climáticas já estão consolidadas, os cientistas concordam que os piores cenários ainda podem ser evitados através da redução drástica das emissões de combustíveis fósseis.

Weber diz que a crosta terrestre se recupera em resposta ao recuo dos glaciares e que a diminuição do seu peso poderia equilibrar a subida do nível do mar, e uma nova investigação, publicada há semanas, mostra que o equilíbrio ainda é possível se a taxa de mudança for suficientemente lenta. “Se mantivermos as emissões baixas, podemos acabar com isto”, disse Weber. “Se as mantivermos elevadas, temos uma situação de fuga e não podemos fazer nada”

Mathieu Casado, paleoclimatologista e meteorologista polar do Laboratório de Ciências Climáticas e Ambientais de França, é especialista no estudo de isótopos de água para reconstruir temperaturas históricas. Segundo Casado, os dados de dezenas de núcleos de gelo recolhidos ao longo do manto de gelo permitiram-lhe reconstruir os padrões de temperatura na Antárctida desde há 800.000 anos.

A investigação de Casado demonstrou que o actual aumento da temperatura nos últimos 50 anos está claramente fora da variabilidade natural, salientando o papel da indústria na produção de emissões de carbono que impulsionam as alterações climáticas.

Mathieu Casado acrescentou ainda que a última vez que a Terra esteve tão quente foi há 125.000 anos, e que o nível do mar era seis a nove metros mais alto, “com uma grande contribuição para a Antárctida Ocidental”.

A temperatura e o dióxido de carbono estavam historicamente em equilíbrio e equilibravam-se mutuamente, disse Casado, mas actualmente temos níveis muito mais elevados de CO2 e estamos longe do equilíbrio. Casado e outros cientistas observaram que a velocidade e a quantidade de carbono que está a ser bombeado para a atmosfera não têm precedentes.

Gino Casassa, glaciologista e director do Instituto Antárctico Chileno, afirmou que as estimativas actuais apontam para uma subida do nível do mar de quatro metros até 2100, ou mais, se as emissões continuarem a aumentar. “O que acontece na Antárctida não fica na Antárctida”, disse Gino Casassa, acrescentando que os padrões atmosféricos, oceânicos e climáticos globais estão ligados ao continente.

“A Antárctida não é apenas um frigorífico de gelo isolado do resto do planeta, que não tem qualquer impacto”, alerta Gino Casassa.

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