Mai voltou a Jerusalém: “O horrível genocídio em Gaza mudou algo profundo em todos os palestinianos”

Após três anos, Mai T., palestiniana a viver na União Europeia, visitou a família em Jerusalém, onde nasceu. “Todos os rostos pareciam iguais — cheios de desespero.” O P3 recolheu o seu testemunho.

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Casa bombardeada por Israel no campo de refugiados de Jabaliya, no norte de Gaza, 3 de Agosto de 2014 REUTERS/Suhaib Salem
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“Passaram quase três anos desde a última vez que pus os pés em Jerusalém, a minha cidade natal. Como palestiniana a viver no estrangeiro, a ânsia de ver a minha família, os meus amigos e de percorrer as ruas da minha cidade superaram todos os riscos e desafios. Apesar dos inúmeros cenários em que as coisas podiam correr mal, adiar a minha visita já não era uma opção. Essa, no entanto, estava destinada a ser diferente de todas – e dos 30 anos que lá tinha passado a viver. O horrível genocídio em Gaza tinha mudado algo profundo em todos os palestinianos do mundo, incluindo em mim. Já não somos o povo que éramos; a dor, a raiva e o trauma estão agora gravados nas nossas almas, permanentes e inabaláveis.

Jerusalém parecia uma cidade-fantasma. O ar era pesado, o tempo parecia estar parado, esvaziado de qualquer significado. Todos os rostos pareciam iguais – todos cheios de desespero. O meu pai, que é mais velho do que o próprio Estado de Israel, tinha rugas mais profundas do que eu me lembrava. Costumávamos ter longas discussões sobre política e direito, mas, desta vez, estávamos ambos sem palavras.

Sentámo-nos juntos, de frente para a televisão, alternando entre imagens em directo de Gaza e entrevistas de analistas políticos que nunca tinham posto os pés na Palestina. Apercebi-me de que as minhas sobrinhas, que ainda não tinham dez anos, também estavam a ver, enquanto brincavam com missangas coloridas. Chocada, ao aperceber-me das cenas horríveis que viam, desliguei rapidamente a televisão. Como é que elas poderiam esquecer aquelas imagens? Porque é que alguém deveria ser sujeito a isto, quanto mais vivê-lo em Gaza? Mais tarde, em tom sarcástico, acusaram-me de me estar a “tornar demasiado europeia”. Diziam-me que era assim que todos nós crescíamos imersos na dor, no horror e na tristeza. Nada nos protege da realidade.

Estar em Jerusalém significava estar a apenas uma hora de carro do Norte de Gaza, onde Israel estava a usar alimentos e medicamentos como armas contra os palestinianos. Mas lá estava eu, sentada à mesa de jantar, a olhar para o vazio, a imaginar o que poderia acontecer se enchesse o meu carro de mantimentos e tentasse conduzir até lá, uma hora de carro. A verdadeira resposta é que, em nenhuma circunstância, conseguiria lá chegar ou regressar com vida. Esta impotência é de cortar a alma. A culpa e a vergonha que todos os israelitas deveriam sentir pesaram de repente sobre mim, como se fossem o meu próprio fardo. É precisamente este o objectivo de Israel: fazer com que todos os palestinianos se sintam impotentes. E eu tinha caído na armadilha.

Mais do que nunca, tenho amigos que são obrigados a viver separados dos seus cônjuges e filhos. Os palestinianos de Jerusalém casados com alguém da Cisjordânia têm de obter uma autorização israelita para que o seu cônjuge possa viver com eles em Jerusalém – um processo que está completamente congelado desde o início da guerra contra Gaza. Encontrar-me com os meus amigos foi um desafio; entre os seus empregos, a escola dos filhos e as exigências de se tornarem subitamente pais solteiros, eles tinham agora de coordenar as visitas de fim-de-semana na Cisjordânia para que todos pudessem reunir-se como uma família. Falhar um fim-de-semana significa ficarem sem ver os seus entes queridos durante quase duas semanas.

Como é que deixámos que isto se tornasse normal? Porque é que um casal precisa de uma autorização israelita para poder passar um dia junto? Estas questões desvanecem-se, quando me lembro de como Israel transmitiu orgulhosamente, em directo na televisão, o seu Exército a cortar o abastecimento de água a mais de dois milhões de pessoas em Gaza. Parece irreal, mas não é. Eu vi, o mundo viu. Eu vi-o, o mundo viu-o, e os decisores políticos de todo o mundo testemunharam – e, no entanto, deixaram que acontecesse.

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No interior da casa de Mai T., em Jerusalém, a sua sobrinha vê televisão enquanto brinca com missangas DR

Em toda a parte, em Jerusalém e na Cisjordânia, senti tensão e uma série de riscos – tais como ficar presa num posto de controlo durante mais de cinco horas só porque, nesse dia, um soldado decidiu que seria assim, colonos cuspirem-me em cima por falar árabe na minha própria cidade, ser detida por lançar um olhar “desagradável” a um israelita que, por isso, se sentiu “ameaçado”. E havia sempre o risco de perder a calma numa situação dessas e levar um tiro sob alegação de ataque.

Durante a minha visita, aconteceu uma agradável coincidência: um primo meu, que estava preso há um ano, estava prestes a ser libertado. Fez 18 anos quando ainda estava atrás de grades. O seu crime? Atirar pedras. Sem provas contra ele, optou por se declarar culpado e aceitar um acordo de um ano, em vez de passar por um interrogatório prolongado. Em Israel, um país que se diz democrático, os civis palestinianos – incluindo menores – são julgados em tribunais militares.

Agora, este meu primo querido estava a regressar a casa. Estávamos entusiasmados, mas preocupados com o facto de, no final do dia, ele poder ser novamente detido ou, pior ainda, de os seus pais poderem ser detidos juntamente com ele, se mostrassem algum sinal de alegria com a sua chegada. Todos os prisioneiros e os seus pais são obrigados a assinar um compromisso escrito de respeitar a política de “não mostrar sinais de alegria”, sob pena de serem detidos. Desde o início da guerra em Gaza, Israel proibiu qualquer comunicação entre os prisioneiros e as suas famílias, ou mesmo os seus advogados.

Este belo jovem envelheceu na prisão. Os sinais de violência e de fome eram visíveis no seu rosto, mas preferiu passar as suas primeiras horas de liberdade a telefonar às famílias dos palestinianos que conheceu na prisão, dando-lhes a pequena mas significativa notícia de que os seus filhos estavam vivos e “bem”. Este é um telefonema que mais de dez mil famílias na Palestina esperam todos os dias.

A punição colectiva dos palestinianos que vivem sob a ocupação israelita não tem limites. O genocídio em Gaza é a sua forma mais extrema, mas o objectivo final deste regime sempre foi drenar a nossa energia e privar-nos da vontade de viver. Todos os dias estão repletos de riscos, todos os aspectos da vida são um desafio, mas o desafio mais assustador de todos é descobrir – para onde vamos a partir daqui?”

Para garantir a segurança dos familiares que permanecem em Jerusalém, Mai T. pediu que a sua identidade fosse mantida em sigilo. O depoimento foi recolhido a partir de um texto redigido por Mai T., que o P3 traduziu integralmente.

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