Planta do escritório

Dei-lhe água, luz, espaço, tempo. Tirei-lhe água, luz, espaço, tempo. Fiquei no meio-termo.

Foto
Megafone P3 Unshplash
Ouça este artigo
00:00
03:02

Tenho visto a minha planta do escritório morrer. Dia após noite, lá vai ela sucumbindo à terra. Mirrando, perdendo o vestido verde, que tão feliz nos deixava e vestindo algo fúnebre, como se adivinhasse que a morte estivesse ao virar da esquina. Dei-lhe água, luz, espaço, tempo. Tirei-lhe água, luz, espaço, tempo. Fiquei no meio-termo. Pedia-me Sol, eu dava. Gritava por sombra. Levava-a para a sombra, chorava por Sol.

Esgravatei soluções milenares, pedi conselhos como quem pede esmola e virei-me para o divino. Não sou crente, mas senti a marcha fúnebre como algo inóspito, sem escapatória, quase tão tangível como as folhas que lhe iam caindo. A nudez, outrora tão pura, cheirava a despedida. Soava a último canto.

Senti-me impotente. Não havia qualquer ritual feito com pompa e circunstância que resultasse. Era ela e eu. Nós. A olhar um para o outro, com visões tão diferentes do espaço que nos rodeava. Falei-lhe ao ouvido, quase como uma prece. Pedi-lhe, timidamente, para ficar mais um pouco. Não era capaz de ver algo morrer aos meus pés. Talvez seja o egoísmo a chave da longevidade. Quando não nos resignamos, por nos sentirmos num lugar de paz; da inércia a confundir-se com conforto, da preguiça disfarçada de bem-estar. O egoísmo prolonga uma morte lenta a qual chamamos inevitabilidades de uma vida a dois. Rotina, interiorizamos para serenar a ansiedade.

Despiu-se uma vez mais. Era a perversa forma do mundo nos enganar. Quanto mais força fazemos para algo seguir o rumo traçado, há sempre um pedaço do outro a desaparecer sem darmos por isso. Por lhe impormos uma crença não sua, por forçarmos um destino tido como ideia conjunta. A água jorrava fora do vaso, por já não poder ser absorvida e em vez disso perseguia-me em formato de lágrimas, para me culpabilizar por não saber inverter a marcha.

Os passos curtos para o destino final foram o mais cruel. Estava ali cravada a falta de arte para pintar sem sombras o que se vai perder. O pincel coloria, sem critério, um quadro saturado de tinta. Já não dava para voltar a reproduzir aquelas folhas verdes, que tão felizes nos fizeram. São irreplicáveis. Eram já tinta sobre tinta, num quadro claro do que iria acontecer. Não havia sombra de dúvidas para encobrir o medo de um alívio escondido.

Colados à última paragem tentámos lembrar-nos dos dias nos quais nos ouvíamos um ao outro. Ela escutava-me muito, eu falava pelos dois. Ela exprimia-se pelo cheiro, eu ia perdendo o olfacto. Forçar amor é forçar a dor. Já não havia mais nada a prendê-la ali. A terra secou, as folhas despediram-se sem saudades dos ramos e as raízes recolheram-se com medo de que não as deixasse ir.

Vivíamos os dias com esperança de que algo mudasse. Não tenho dúvidas de que foi isso que a matou.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários