Pela primeira vez, um fundador de uma grande plataforma online foi detido por causa do conteúdo que lá circula. 

Pavel Durov é o CEO do Telegram, uma aplicação semelhante ao WhatsApp, mas ainda mais focada na privacidade e que permite grupos de conversa com muito mais pessoas. Foi detido neste sábado à noite no aeroporto de Paris. Tinha acabado de aterrar no seu avião privado vindo do Azerbaijão.

Durov ainda não é acusado de nada. As autoridades estão a investigar o possível incumprimento de legislação europeia que obriga as plataformas a terem mecanismos para remover conteúdo criminoso, incluindo conteúdo relacionado com tráfico de drogas, terrorismo e pornografia infantil. Se não for acusado, Durov terá de ser libertado ao fim de 96 horas.

O episódio é relevante por três razões.

Em primeiro lugar, é um episódio inédito no jogo que as autoridades na União Europeia disputam há anos com as empresas de Internet.

O mais perto que Mark Zuckerberg esteve de responder pelo funcionamento do Facebook foi uma audição no Parlamento Europeu. Este mês, houve quem pedisse que Elon Musk fosse presente à justiça para responder pelo que escreveu e deixou escrever no Twitter, a propósito da violência xenófoba no Reino Unido; mas não há motivo para crer que venha a ser detido ao sair de um avião em Londres. 

O Telegram é, na moderação do conteúdo, uma plataforma mais difícil do que o Facebook ou o X. Foi construído para minimizar a possibilidade de intervenção das autoridades. A sede legal é nas Ilhas Virgens Britânicas. 

A detenção ilustra a dificuldade dos Estados de direito em assegurarem a liberdade de expressão, impedindo ao mesmo tempo as plataformas de resvalarem para um maximalismo libertário que facilita todo o tipo de crimes – e que é o funcionamento para o qual as plataformas, e os seus fundadores, se inclinam. 

Musk, o mais conhecido dos maximalistas, apressou-se a interceder a favor de Durov. Entre outras mensagens, escreveu no X que daqui a uns anos haveria execuções na Europa por alguém ter gostado de um meme. (A pena de morte não existe em nenhum país europeu, com excepção da Bielorrússia e da Rússia, sendo que neste caso já não é aplicada desde 1996; o mesmo não é verdade nos países onde Musk gosta de fazer negócios, incluindo as duas maiores potências mundiais.)

As tentativas de impedir que as plataformas online sejam um oeste selvagem é uma disputa em que os libertários levam vantagem. A moderação dos conteúdos tem emperrado em escolhos múltiplos: a pouca vontade das empresas em assumir uma responsabilidade que nunca quiseram e que pesa nas contas; a dificuldade em fazer e em aplicar as leis; e a imensidão da tarefa, que seria sujeita a falhas mesmo que as plataformas nela estivessem empenhadas.

Os próximos tempos vão clarificar se a detenção de Durov teve algum efeito neste jogo.

Em segundo lugar, o caso ganhou contornos geopolíticos. 

O primeiro comentário oficial foi feito por não outro que o Presidente francês. No X, Emmanuel Macron escreveu: "A detenção do presidente do Telegram em solo francês teve lugar como parte de uma investigação judicial. Não é de forma alguma uma decisão política. Cabe aos juízes decidirem sobre essa matéria."

Quando um governante diz que algo não é uma decisão política, é porque o caso já o é.

O Telegram é uma aplicação popular na Rússia e na Ucrânia. Desde a invasão russa, tem sido uma fonte de informação e de propaganda sobre a guerra. Há grupos onde militares trocam detalhes do campo de batalha.

A embaixada Russa em Paris pediu acesso consular ao empresário. Ao que se sabe, não o obteve. Mas a actuação francesa permitiu à Rússia alimentar um outro jogo, em que tem apostado para efeitos internos sobretudo desde Fevereiro de 2022: a disputa de virtudes com o Ocidente. Alguns deputados russos exigiram a libertação de Durov e criticaram a detenção como sendo politicamente motivada. 

É uma reviravolta: Durov abandonou a Rússia precisamente por estar descontente com as medidas censórias e persecutórias de Moscovo.

O que nos leva ao terceiro ponto de interesse nesta história: o protagonista é diferente dos empresários de Silicon Valley, em boa parte por ser um dos rostos da multipolarização que também está a acontecer no mundo da tecnologia.

Na Europa, é fácil pensar na Internet como um mundo de empresas e aplicações americanas: do Google à Microsoft, do Facebook ao Instagram, da Netflix à Amazon (o sueco Spotify é a excepção). Noutras longitudes, o panorama muda, seja pelos normais efeitos de rede ou pelo contexto político.

Durov é um dos mais relevantes empreendedores tecnológicos desconhecidos do grande público europeu. Cresceu em Itália e na Rússia. Em 2006, fundou a rede social VKontakte, tornando-se nos anos seguintes numa figura incómoda para Moscovo. Não acabou com contas de opositores políticos, como as autoridades pretendiam. Também não cedeu dados de utilizadores que apoiavam a revolução de Maidan, na Ucrânia. 

Num "golpe de estado" corporativo, foi afastado do cargo em 2014. Deixou a Rússia e disse não ter planos para voltar. Começou por comprar a cidadania nas ilhas de São Cristóvão e Neves, e é hoje também cidadão francês e dos Emirados Árabes Unidos. Fundou o Telegram, muito popular em vários países, incluindo os da antiga União Soviética. Na Rússia, a aplicação é um refúgio para a comunidade LGBT.

O Telegram afirmou entretanto que cumpre a lei europeia. Mas também escreveu – e é este o busílis – que "é absurdo que uma plataforma ou o seu dono sejam responsáveis por abusos nessa plataforma." 

Independentemente do que venha a ser o resultado das investigações e de um eventual julgamento, as opiniões vão dividir-se. É Durov um paladino da liberdade de expressão e um protector de oprimidos, ou um libertário facilitador de actividades criminosas?

Não são hipóteses mutuamente exclusivas, e noutros tempos talvez houvesse margem para um meio-termo. Mas o mundo dividido, polarizado e das verdades pessoais e absolutas é precisamente o mundo que as plataformas como o Telegram ajudaram a criar. E é neste mundo que o caso Durov se vai desenrolar.