Iridologia e auriculoterapia – olhos e orelhas como bonecas vudus

A legislação que regula as terapias alternativas em Portugal assumiu ideias pseudocientíficas absurdas, incluindo-as em programas de licenciatura. Essa legislação deveria ser toda revogada.

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Olho humano Pedro Cunha/Arquivo
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As bonecas vudus são figuras humanas em miniatura usadas em tradições mágicas de várias culturas tradicionais, nas quais se espetam agulhas com a intenção de induzir doença ou dor num inimigo. A iridologia e a auriculoterapia têm em comum com elas a ideia de que há partes do corpo – os olhos ou a orelha – que representam o corpo inteiro e com as quais se pode interagir para diagnosticar ou tratar doenças. As duas pseudociências – pois é disso que se trata, por não haver plausibilidade nem provas de eficácia – fazem parte dos conteúdos da Licenciatura em Naturopatia, definidos oficialmente na Portaria n.º 172-F/2015. São apenas dois exemplos de pseudociência entre os vários que surgem na legislação que regula as terapêuticas não-convencionais em Portugal, como veremos neste texto que faz parte da série Como perder amigos rapidamente.

Algumas pseudociências são legados de tradições pré-científicas, para as quais se inventa um fundamento científico. Outras são simplesmente o produto da imaginação de pessoas bem-intencionadas e auto-iludidas. A iridologia insere-se nesta última categoria. Foi inventada por um médico húngaro, chamado Ignaz von Peczely, no final do século XIX. Na infância, ele encontrou uma coruja com uma pata partida e uma mancha preta numa das íris. Cuidou da ave e, quando esta estava recuperada, reparou que a mancha do olho também tinha desaparecido. E, a partir de uma simples observação do menino Ignaz, nasceu a iridologia, hoje cultivada por numerosos adultos!

Posteriormente, Peczely dedicou-se a mapear o resto do corpo. Simplesmente inventou, desenhando mapas de ambas as íris, que serviam como métodos de diagnóstico de todas as maleitas de que se conseguiu lembrar. A prática ainda hoje é usada, existindo por vezes recurso a imagens digitais e análise computacional, à qual se segue uma receita de vitaminas. Tal como em muitas outras pseudociências centenárias, foi-lhe adicionado o jargão científico da moda.

Uma maneira óbvia de avaliar se a iridologia funciona como método de diagnóstico é ver se iridologistas experientes conseguem distinguir pacientes com doenças bem diagnosticadas de outros que são saudáveis. Por exemplo, numa investigação realizada em 1979, foram mostradas fotografias da íris de 146 pacientes, alguns com doença renal e outros saudáveis, a três iridologistas experientes e a três oftalmologistas.

A frequência de falsos positivos e dos falsos negativos foi a que se esperaria se os diagnósticos fossem feitos completamente ao acaso. Em estudos semelhantes posteriores os iridologistas foram também incapazes de diagnosticar doença da vesícula biliar ou colite ulcerosa. Uma revisão sistemática da literatura médica, publicada em 2000 e que teve em conta 77 estudos sobre iridologia, concluiu: “Como a iridologia tem o potencial para causar danos pessoais e económicos, pacientes e terapeutas devem ser desencorajados de a usar.” Os maiores riscos são os diagnósticos falsamente negativos, fazendo com que os doentes não procurem os tratamentos de que afinal precisam.

A auriculoterapia é a mesma coisa, mas com orelhas em vez de olhos. Baseia-se na ideia de que as estruturas e as funções do corpo estão mapeadas na superfície externa do ouvido e que a estimulação desses pontos permite diagnosticar e tratar problemas de saúde no corpo inteiro. Também tem um guru epifânico, o neurologista francês Paul Nogier, que em 1957 (vá lá, desta vez o inventor era adulto) desenhou um mapa com os pontos do pavilhão auricular e respectivas correspondências (será que orelha tem um ponto que corresponde à orelha?).

Mais tarde, investigadores chineses declararam que os pontos identificados pelo francês coincidem com os da medicina chinesa. Tratando-se, na China, uma forma de acupunctura, também se baseia em princípios estranhos ao conhecimento científico. Neste caso como noutros, os estranhos tocam-se.

Numa investigação publicada em 1984, investigadores avaliaram o efeito da auriculoterapia no alívio da dor crónica. Dividiram os pacientes em três grupos: a um aplicaram estímulos eléctricos nos “pontos Nogier”, a outro fizeram esses estímulos em pontos auriculares não relacionados com a dor e ao terceiro grupo foi efectuada estimulação táctil (sem corrente eléctrica) nesses pontos não relacionados. Concluíram que a estimulação eléctrica dos “pontos Nogier” não tinha um efeito superior ao de um placebo.

Há outros estudos mais recentes, que enfermam dos problemas habituais de investigação em acupunctura: falhas metodológicas graves que não permitem tirar conclusões e resultados sistematicamente positivos nos ensaios clínicos realizadas num conjunto de países asiáticos, o que sugere um enviesamento sistemático.

A legislação que regula as terapias alternativas em Portugal assumiu ideias pseudocientíficas absurdas, incluindo-as em programas de licenciatura. Essa legislação deveria ser toda revogada.

Bioquímico e divulgador de ciência

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