“Peso absurdo da burocracia” pode ajudar a explicar falhanço na abordagem inicial ao incêndio na Madeira

Características do território, falha no ataque inicial e desvalorização do dano ambiental fazem parte da história do fogo que arde na Madeira há nove dias, dizem especialistas.

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Combate ao incêndio na Madeira conta, desde esta quinta-feira, com dois aviões Canadair HOMEM DE GOUVEIA / LUSA
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O “peso absurdo da burocracia” é um dos ingredientes do “cocktail de razões” que explicam que, ao fim de nove dias, ainda não se tenha dominado o incêndio que consome a floresta da ilha da Madeira. Para Duarte Caldeira, presidente do Centro de Estudos e Intervenção em Protecção Civil, “falta definir onde começa e acaba a intervenção do decisor político e onde começa e acaba a intervenção do decisor técnico”.

Dependente de decisões a nível autárquico (neste caso, regional), a intervenção técnica é relegada para segundo plano em função de questões que não têm, necessariamente, que ver com o plano técnico.

“A Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil — que não é autoridade continental não tem condições objectivas, mediante a avaliação que faz, de tomar a iniciativa de disponibilizar meios”, afirma Duarte Caldeira, antigo presidente da Liga de Bombeiros. “Estamos perante o peso absurdo da burocracia.”

“Bombeiros estão a matar-se para suprir uma falha que não é deles”

Para Miguel Sequeira, botânico e professor da Universidade da Madeira, a falha esteve logo na avaliação inicial, com falta de meios humanos. “Com a dimensão que o fogo tem, 150 homens da força especial de bombeiros é um número ridículo”, lamenta o investigador. “No início, esses 150 homens tinham sido fantásticos, mas, neste momento, estes homens estão a matar-se para suprir uma falha que não é deles, mas de quem os convocou tarde e a más horas. É vergonhoso.”

Trata-se de um território com risco identificado e registo de ocorrências semelhantes no passado. “Acompanhando o desenvolvimento do incêndio e tendo presente o historial do território, ao fim de 24 horas era fácil de perceber, atendendo às variáveis, que se estaria na presença de um incêndio como o que se desenvolveu”, considera Duarte Caldeira.

“A partir do momento em que se tem um fogo com estas frentes, com vales escavados de ravinas verticais onde ninguém chega, vai-se ter sempre um fogo grande”, realça Miguel Sequeira. O que é determinante na ilha da Madeira, sublinha o botânico, é a primeira reacção: “O ataque inicial não pode ser feito da forma proporcional à dimensão do fogo que está à vista, mas de acordo com o fogo que se prevê que venha a acontecer, dadas as condições orográficas e o historial.”

E o historial da ilha da Madeira mostra que “todos os fogos começaram muito pequenos, mas transformaram-se em gigantescos — todos eles, em determinadas condições, sobretudo nas orografias mais difíceis”, relata o botânico. “Não se pode ficar à espera para ver se o fogo vai ficar grande. Quando ficar grande, já não se pode fazer nada.”

Uma catástrofe ambiental

Para Duarte Caldeira, “há um cocktail de razões” que podem explicar a forma como tem corrido a gestão do incêndio.

Além da burocracia e das decisões políticas, poderá estar em causa uma avaliação insuficiente do dano causado pelo fogo. Para o presidente do governo regional, Miguel Albuquerque, o combate ao incêndio tem sido bem-sucedido, tendo em conta que não se registou qualquer perda humana, de habitações ou de infra-estruturas públicas essenciais.

“Mas cabe outra dimensão que a doutrina internacional da protecção civil tem vindo a valorizar, que é o dano ambiental”, complementa Duarte Caldeira. “Uma catástrofe ambiental é uma catástrofe. Pode não ter vítimas imediatas visíveis, mas irá fazer vítimas indirectas”, sublinha. “É culturalmente errado subestimar-se a dimensão ambiental na avaliação do dano da catástrofe.”

O antigo presidente da Liga de Bombeiros acredita que a desvalorização do dano ambiental deve-se também ao facto de “não se ser capaz de o identificar”.

Alarme de bolso para guardar jóia

É também essa a opinião de Miguel Sequeira, que faz notar que falta ao sistema de protecção civil da Região Autónoma da Madeira recursos especializados no combate aos fogos florestais. “A Madeira tem, nos ecossistemas que possui, uma jóia que não pode estar guardada simplesmente por um alarme de bolso. Não é essa sensação que dá? Que temos a melhor floresta de Portugal guardada por um pobre homem sozinho?”

Ao longo da última semana, as lacunas no dispositivo de vigilância florestal e prevenção de fogos na Madeira foram-se tornando claras. “A vigilância à floresta e o combate a qualquer incêndio têm de ser feitos de forma proporcional ao valor do bem. Não se pode ter uma resposta ordinária a um bem extraordinário, isso é inaceitável”, reforça o botânico e professor da Universidade da Madeira, referindo-se aos vários ecossistemas únicos da Madeira, incluindo a floresta laurissilva, património natural da UNESCO.

Meios aéreos essenciais?

Os meios aéreos podem ser um factor determinante para reduzir a intensidade dos incêndios e circunscrever a sua área de expansão, mas os especialistas sublinham que é com os meios terrestres que os incêndios são dominados. Os meios aéreos, aliás, têm um alcance limitado em caso de vento forte, como é frequente na região. “O grande problema dos meios aéreos é que só voam se não estiver vento e o fogo só se propaga quando há vento”, salienta Miguel Sequeira, da Universidade da Madeira.

A compra de um helicóptero para estar em permanência no arquipélago da Madeira foi amplamente debatida na sequência do grande incêndio de 2016 na ilha, tendo sido concretizada apenas há uma mão-cheia de anos. Na altura, recorda Duarte Caldeira, foi feito um teste de helicóptero e de um avião médio. Manteve-se a dúvida sobre se era possível ou não operar com êxito um avião pesado na Região Autónoma da Madeira.

Agora haverá oportunidade de esclarecer as dúvidas: graças ao apoio do Mecanismo Europeu de Protecção Civil, o combate ao incêndio na Madeira conta desde esta quinta-feira com dois aviões Canadair, que precisam de pistas com 400 metros de comprimento para se reabastecer e irão encher os seus tanques de seis mil litros nas bocas-de-incêndio do Aeroporto do Porto Santo. “Pode ser um case study, vai ter de se acompanhar com atenção e analisar.”

O que fazer agora?

Duarte Caldeira regressa ao mantra da protecção civil, “preparação e planeamento”, para olhar para os próximos passos.

É preciso olhar com urgência para a situação de degradação dos solos afectados por estes incêndios, identificando desde já zonas de potenciais deslizamentos de terra e de massas rochosas, para que não se repitam tragédias como a de 2016. Não será surpreendente, aliás, a ocorrência de cheias rápidas nos meios urbanos — “é só olhar para a história”.

Por fim, sublinha o presidente do Centro de Estudos e Intervenção em Protecção Civil, é preciso repensar a Lei de Bases da Protecção Civil. Mais precisamente, “falta clarificar que, em situações de emergência, há circunstâncias em que a autoridade nacional pode antecipar-se à autoridade municipal”. “Não vamos passar por cima da autonomia regional”, sublinha o investigador.

Mas, neste caso, a partir do momento em que é activado o plano de emergência, a lei de bases deve permitir que o poder de decisão passe para a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil — “que é a autoridade nacional, não é autoridade continental”, repete e “não fique dependente dos estados de alma” dos decisores políticos.

“Não precisamos de cortar cabeças”

Duarte Caldeira acredita também ser avisado criar uma equipa que tenha na Região Autónoma da Madeira uma outra equipa independente multidisciplinar, com cientistas e técnicos, para identificar “onde é que se cometeu erros para que sejam corrigidos”. “Para que no próximo incêndio — que vai acontecer sejam alterados procedimentos”, sublinha.

Para o investigador, não está em causa discutir a demissão de pessoas, já que a responsabilidade muitas vezes “não é de ninguém em especial” e as falhas ocorrem em contextos políticos e técnicos.

“Não precisamos de cortar cabeças para resolver problemas, precisamos de os enfrentar de forma criteriosa, técnica, científica. Os problemas nunca se resolveram demitindo pessoas.” com Nicolau Ferreira