As mortes associadas ao calor podem triplicar na Europa até 2100 se mantivermos as políticas climáticas actuais, prevê um estudo da revista científica Lancet Public Health publicado esta quarta-feira. Num cenário semelhante, que implica uma subida da temperatura média global de 3 graus Celsius, Portugal mais do que duplica o número estimado de óbitos por ano associados a temperaturas elevadas, passando de 1008 (condições actuais) para 2284 (subida de 3 graus Celsius).
“A nossa análise revela que o rácio de mortes causadas pelo frio e pelo calor mudará drasticamente ao longo deste século, com as mortes atribuídas ao calor a aumentarem em todas as partes da Europa. Paralelamente, as mortes relacionadas com o frio diminuirão ligeiramente. O nosso estudo analisa mais de 1000 regiões em 30 países, permitindo identificar os pontos críticos onde as pessoas serão mais afectadas no futuro”, afirma o co-autor Juan-Carlos Ciscar, do Centro Comum de Investigação da Comissão Europeia (JRC, na sigla em inglês), citado numa nota de imprensa da entidade.
Os cientistas estimam que, num cenário de aquecimento global de 3 graus Celsius, o número de mortes atribuídas ao calor na Europa possa subir de 43.729 para 128.809 até ao final do século. No mesmo cenário climático, os óbitos associados ao frio sofreriam uma ligeira queda, passando de 363.809 para 333.703 até 2100.
O artigo sugere ainda que, juntas, as temperaturas altas e baixas causam hoje 407.538 mortes por ano em toda a Europa. Se os termómetros do planeta subirem 3 graus Celsius, prevê-se que as mortes relacionadas com o frio e o calor aumentem 13,5% - mais 55.000 mortes por ano. Este acréscimo deve-se aos óbitos associados ao calor, afectando sobretudo o grupo etário acima dos 85 anos. Calcula-se que Espanha, Itália, Grécia e partes de França sejam as geografias que mais sofrerão o impacto do aumento das temperaturas.
Este estudo apresenta, segundo uma nota do JRC, “a primeira análise aprofundada dos riscos actuais e futuros para a saúde decorrentes das temperaturas altas e baixas em toda a Europa”, com o mérito de analisar o impacto previsto por regiões. Esta maior precisão geográfica poderá contribuir, esperam os autores, para a criação de políticas públicas capazes de proteger as zonas mais críticas e as populações mais vulneráveis.
“O nosso estudo identifica os pontos críticos onde o risco de morte devido a temperaturas elevadas deverá aumentar drasticamente na próxima década. Há uma necessidade crítica de desenvolver políticas mais direccionadas para proteger estas áreas e os membros da sociedade que correm maior risco devido a temperaturas extremas”, defende o co-autor David García-León, também do JRC, citado no mesmo documento.
As soluções podem passar, por exemplo, pelo redesenho das cidades, através do plantio de mais árvores capazes de oferecer sombras ou da criação de espaços seguros e climatizados para receber idosos durante ondas de calor ou frio. Estas adaptações climáticas têm de ser feitas, contudo, paralelamente aos esforços de redução drástica de emissões de gases com efeito de estufa.
Os serviços de saúde também terão de acompanhar a evolução do clima tendo em conta aspectos como a expansão de vectores de doenças transmissíveis em novas áreas, ou mesmo a alteração na prevalência de doenças crónicas que prejudicam a termorregulação (como a diabetes tipo 1 e 2).
E as mortes associadas ao frio?
Apesar da crise climática, a mortalidade associada às temperaturas mais baixas não sofreria uma alteração muito significativa com a subida dos termómetros globais. Por outras palavras, as temperaturas baixas podem até ficar menos baixas até 2100, mas continuarão a ser letais para muitos, uma vez que o envelhecimento das populações tende a diluir a queda da mortalidade causada pelo frio.
“Estes resultados reforçam o cepticismo anteriormente expresso sobre reduções grandes e incondicionais da mortalidade relacionada com o frio à medida que as regiões temperadas se tornam mais quentes”, refere o investigador Matteo Pina Pintor, que não esteve envolvido no estudo, num comentário publicado na mesma edição da Lancet Public Health.
O estudo estima que, actualmente, as mortes associadas ao frio são mais elevadas na Europa de Leste e nos Estados bálticos e mais baixas na Europa Central e em partes da Europa do Sul, com taxas que variam entre 25 e 300 mortes por 100.000 pessoas, refere um comunicado do JRC. As mortes relacionadas com o calor variam entre 0,6 e 47 mortes por 100.000 pessoas. O Reino Unido e os países escandinavos ostentam as taxas mais baixas, ao passo que a Croácia e o Sul da Europa registam as mais elevadas.
Se mantivermos a política climática actual, contudo, Portugal apresentaria uma descida mais acentuada da mortalidade associada ao frio por ano, passando de 7345 (nas condições actuais) para 4682 (subida de 3 graus Celsius). Os dados obtidos sugerem ainda reduções moderadas nas mortes relacionadas com o frio na Europa de Leste e ligeiras descidas em partes da Alemanha, França e Itália. Por outro lado, estima-se um aumento da mortalidade causada pelas temperaturas mais baixas na Irlanda, Noruega e Suécia. Esta subida está associada ao envelhecimento da população nesses países, onde se prevê que haja cada vez mais habitantes com 85 ou mais anos.
“O número de mortes relacionadas com o frio é três a oito vezes superior ao das mortes relacionadas com o calor, mas, num cenário em que a temperatura global aumenta 3 graus Celsius, este rácio seria reduzido para duas a cinco vezes até 2100, em grande parte devido a um aumento das mortes relacionadas com o calor entre as pessoas com 85 anos ou mais no Sul da Europa”, avalia Matteo Pina Pintor.
Como foi feito o estudo?
Os investigadores reuniram dados relativos a 1368 regiões de 30 países europeus para modelar o risco de mortalidade local para diferentes grupos etários. Este conjunto de dados resulta da compilação e análise de características epidemiológicas e socioeconómicas de 854 cidades europeias com população superior a 50.000 habitantes. Portugal está representado no estudo com dados de 23 áreas, mais precisamente de 23 NUTS 3 (Nomenclatura das Unidades Territoriais para fins Estatísticos). Os arquipélagos foram excluídos da análise.
As estimativas consideram, isoladamente, cinco grupos etários: dos 20 aos 44 anos, dos 45 ao 64, dos 65 aos 74, dos 75 aos 84 e, por fim, pessoas com 85 ou mais anos. “Os dados revelaram um risco mais elevado de mortalidade relacionada com a temperatura nos grupos etários mais velhos, e o efeito foi especialmente pronunciado para a mortalidade relacionada com o frio”, observa Matteo Pina Pintor, investigador do Instituto de Investigação Socioeconómica do Luxemburgo (LISER, na sigla em inglês).
Os autores calcularam as estimativas consoante a geografia e, em seguida, tais dados foram convertidos em taxas de mortalidade padronizadas por idade e combinados com projecções do clima e da estrutura etária até 2100. Os cálculos foram feitos para quatro cenários diferentes de aquecimento global (subida da temperatura global de 1,5, 2, 3 e 4 graus Celsius), recorrendo a uma combinação de 11 modelos climáticos diferentes.
“Ao comparar as projecções em que a demografia ou o clima eram constantes, os autores foram capazes de decompor esta carga em fracções atribuíveis a alterações na exposição (ou seja, temperaturas mais elevadas) versus alterações na demografia da população em risco”, resume Matteo Pina Pintor.
Limitações do estudo
Uma das limitações do estudo, reconhecida pelos autores, está em basear-se em dados relativos a populações urbanas. Fenómenos como as “ilhas de calor” são mais comuns em cidades, expondo as pessoas que ali vivem a um stress térmico maior do que aquele a que estão sujeitos os habitantes de zonas rurais.
Por outras palavras, as estimativas obtidas poderiam talvez ser diferentes – “ligeiramente menos exageradas”, segundo a nota de imprensa – se fosse incluída informação oriunda de zonas não-citadinas. Além disso, os resultados reflectem a saúde das populações face ao frio ou o calor segundo a geografia e a idade, mas descuram factores como o género ou a etnia. Por fim, as faixas etárias consideradas só contemplam adultos, deixando de fora um grupo particularmente vulnerável ao calor: as crianças com menos de dois anos (bebés).