Tratamento involuntário. Lei mudou, mas ainda “há um caminho a fazer”

Abriu-se a possibilidade de doentes dizerem antecipadamente que tipo de tratamento aceitam. Há quem receie que doentes sejam deixados para trás, sobretudo as mulheres.

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Jardins Hospital Júlio de Matos Rui Gaudêncio
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O novo modelo de tratamento involuntário aproximou Portugal da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, mas ainda divide. Há quem ache que Portugal foi longe de mais e quem ache que Portugal não foi suficientemente longe.

Até há um ano, falava-se em internamento compulsivo de portador de anomalia psíquica grave. De há um ano para cá, fala-se em tratamento involuntário de pessoas com doença mental. Só pode ser accionado para prevenir ou eliminar algum perigo para bens pessoais ou patrimoniais e se for “proporcional à gravidade da doença mental, ao grau do perigo e à relevância do bem jurídico”.

“Já não basta o médico considerar que ao doente falta discernimento para avaliar a necessidade de tratamento e que isso está a deteriorar o seu estado de saúde”, interpreta Sofia Brissos, psiquiatra no pólo Júlio de Matos da Unidade Local de Saúde de São José, em Lisboa, e perita do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses. “Temos de esperar que haja uma situação de perigo. Não somos bons a calcular o perigo. Duas coisas podem acontecer: deterioração do estado clínico do doente; algo grave para o próprio ou para terceiros.”

Teme que fiquem para trás “sobretudo as mulheres, que normalmente não são tão agressivas”. “Podem estar muito doentes, a ouvir vozes, a achar que alguém lhes quer fazer mal, mas não são perigosas, ficam quietinhas a alucinar.” Ocorre-lhe o exemplo de uma que deu entrada no serviço de urgências do São José. “Os meus colegas só conseguiram accionar o tratamento involuntário porque fizeram análises e descobriram uma anemia grave. Se aquela doente não recebesse transfusões, morria.”

Também teme que haja uma maior associação entre doença mental e perigosidade. “É como se só valesse a pena tratar os perigosos. Para mim, não tem sentido dizer a uma pessoa que está gravemente doente e não tem capacidade para decidir: vá lá, porque não constitui perigo.” Quem não constitui perigo, se não for tratado, pode vir a constituir. “Muitas vezes, quando são internados já cometeram crimes.”

Miguel Xavier, coordenador nacional das políticas de saúde mental, discorda “totalmente”. Os conceitos mudaram, mas os critérios mantiveram-se. “Os princípios fundamentais são a gravidade e a proporcionalidade”, salienta aquele psiquiatra. “A gravidade e a proporcionalidade são duas ferramentas essenciais no julgamento, não digo de um psiquiatra, digo de um médico.”

Não foi possível obter dados da Comissão de Acompanhamento da Execução do Regime Jurídico do Tratamento Involuntário, a que cabe receber e apreciar reclamações, solicitar ao Ministério Público a correcção de situações anómalas, recolher e tratar informação relativas ao tratamento involuntário, emitir recomendações e fazer propostas de alteração. O presidente dessa estrutura, Fernando Vieira, encontra-se de férias, “sem acesso a dados”, pelo que foge a prestar declarações “sem falar com os colegas, tratando-se de informação sensível”.

Paula Campos Pinto, coordenadora do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos, lembra que “internacionalmente há um movimento de pessoas que se dizem sobreviventes dos serviços de psiquiatria que contesta vivamente o internamento involuntário”. A lei reforçou o respeito pela autonomia e pelos direitos dos doentes, mas “há ali coisas que continuam, embora mais moderadas, há um caminho a fazer”.

Existem novas possibilidades, ainda pouco conhecidas, sobre as quais é preciso informar as pessoas. “Neste momento, a própria lei prevê que as pessoas possam definir previamente que tipo de tratamento autorizam”, explica. O poder da declaração prévia não é absoluto. Mesmo que lá conste que não quer receber tratamentos, “o juiz pode entender que a pessoa constitui perigo e forçá-la”. Faltam respostas na comunidade para evitar que se chegue a esse ponto.

No seu entender, como preconiza a reforma da saúde mental, o país precisa de fazer uma “maior aposta ao nível comunitário para começar a acompanhar estes casos que muitas vezes se manifestam na adolescência”. “Temos de reforçar a intervenção na comunidade, a começar pelas escolas.”

“Se a saúde mental tem problemas, é por falta de resposta, é por faltas de equipas comunitárias, é por ainda haver hospitais psiquiátricos, não é por causa de termos uma lei de saúde mental que está ao nível daquilo que se faz na Europa”, corrobora Miguel Xavier. “Em termos do investimento na saúde mental em Portugal, estamos 20 anos atrasados em relação aos outros países da Europa, ao contrário do que se passa com as outras especialidades.”

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