Mito: o canto das cigarras é um presságio de calor?

É durante o Verão que ouvimos o canto das cigarras porque estes insectos “cantores” dependem de temperaturas mais altas para contrair a musculatura e fazer vibrar um “tambor” que possuem no abdómen.

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A cigarra-comum (Cicada orni) é uma das duas espécies mais observadas em Portugal Nigel Harris/Getty images
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O canto das cigarras não é um prenúncio de dias mais quentes, ainda que o som produzido por estes insectos da família Cicadidae ocorra sobretudo no Verão, quando as temperaturas são mas altas. “Não é verdade que quando as cigarras cantam mais alto, por exemplo, haverá necessariamente mais calor nos dias seguintes”, explica ao PÚBLICO Vera Nunes, cientista do projecto Cigarras de Portugal.

O barulhinho característico das cigarras resulta de uma contracção muscular do abdómen do insecto, onde estão localizadas membranas vibrantes e cavidades estruturas que funcionam como um tambor. Quando os músculos são encolhidos e distendidos, há um estremecimento das membranas, produzindo um som estridente. Esta “ginástica” com fins acústicos torna-se muito difícil, ou mesmo impraticável, abaixo dos 22 graus Celsius.

“É por isso que as cigarras não cantam à noite”, esclarece a colaboradora do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c) da Universidade de Lisboa. Em resumo: o canto das cigarras ocorre em dias mais quentes, mas não constitui um presságio de calor.

Nos dias mais abafados, em que os termómetros registam valores mais elevados logo no início da manhã, podemos ter cigarras a cantar mais cedo do que o habitual. “Pode haver um ajuste comportamental consoante a temperatura do dia, isso sim é possível”, afirma Vera Nunes.

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Cigarra-verde-do-alentejo (Euryphara contentei) Vera Nunes/DR

Estes insectos de olhos grandes costumam surgir em Maio. E se houver uma vaga de calor fora de época, as cigarras também podem começar a cantar mais cedo no ano? “Se o período de calor for em Março ou Abril, como aconteceu em 2023, é demasiado cedo e as cigarras não conseguem responder com esta rapidez. E seria também catastrófico para elas porque, se na semana seguinte voltássemos às temperaturas habituais para aquela altura do ano, a cigarra já não conseguiria cantar”, explica Vera Nunes.

Por outro lado, nos dias de calor extremo – que tendem a ser mais comuns com a crise climática –, as cigarras podem ter de interromper o “coro musical” se a temperatura chegar aos 40 graus Celsius. “Elas precisam de um intervalo adequado de temperatura para cantar. Começam a silenciar quando sobreaquecem, é demasiado para elas. Se estiver muito frio, elas vão cantar mais lentamente ou então não vão cantar de todo”, observa.

Vera Nunes explica que ainda não está suficientemente estudado o efeito da crise climática nas cigarras portuguesas. “Estamos ainda a recolher informação para ter uma série de dados. Dos dados preliminares que temos, sabemos que 2023 foi um ano atípico para muitas espécies. Elas surgiram três semanas antes do que habitualmente costumavam surgir. Verificámos que a abundância de exúvias observadas [vestígios de cigarras que nos dão a indicação dos adultos que emergiram] foi muito maior no Verão de 2023 face aos outros anos. Não sabemos até que ponto as alterações climáticas estão ligadas a essas oscilações, que podem ser naturais”, nota a investigadora.

Machos cantadores, fêmeas silenciosas

Apenas os machos cantam, sendo capazes de produzir “músicas” num volume acima dos 100 decibéis. Já as fêmeas são silenciosas. “O canto tem como função atrair as parceiras para o acasalamento, e também é uma forma de competição entre os machos. Eles tendem a agregar-se, como num coro, concorrendo entre si, mas também convidando as fêmeas para virem para junto deles”, refere a investigadora.

Em Portugal, há 13 espécies de cigarras, das quais quatro estão ameaçadas segundo o Livro Vermelho dos Invertebrados de Portugal Continental (2023). Nas fichas de avaliação presentes nessa publicação, disponibilizada gratuitamente na página do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), podemos verificar que as espécies cigarra-verde-do-Alentejo (Euryphra contentei), cigarrão-abelhudo (Hilaphura varipes) e cigarra-de-maria (Tettigettalna mariae) estão classificadas como “em perigo”. O cegarregão (Lyristes plebejus), por sua vez, surge com o estatuto de “vulnerável” na obra de referência.

“A situação das restantes espécies de cigarras foi considerada ‘pouco preocupante’, com a excepção de Tibicina tomentosa e Tibicina quadrisignata, avaliadas na categoria ‘dados insuficientes’”, observa Vera Nunes. As duas espécies mais observadas são a cigarra-comum (Cicada orni) e a cigarra-comum-do-sul (Cicada barbara).

O projecto de “ciência cidadã” Cigarras de Portugal, criado em 2019, procura justamente melhorar a avaliação não só do estatuto de conservação dessas espécies, mas também da distribuição geográfica das populações no país. A iniciativa permite que qualquer cidadão possa contribuir com imagens e ficheiros de som que registem a observação de um espécimen. Estes registos ajudam a compor uma cartografia possível da presença das cigarras em Portugal.

Quem espreitar hoje o mapa do projecto, hospedado na plataforma BioDiversity4All, verá manchas alaranjadas mais intensas no Algarve e no litoral da área mais central de Portugal continental – o que indica que essas são as zonas onde o Cigarras de Portugal registou mais observações. “As regiões mais quentes têm, de facto, mais diversidade e abundância”, conclui Vera Nunes.

No que toca ao Alentejo – uma região mais quente, mas que surge no mapa com baixo registo de observações –, a escassez de manchas alaranjadas pode ser explicada, segundo a cientista, pela baixa densidade populacional (logo, menos observações) e pelas extensas áreas dedicadas à agricultura. “Há olivais intensivos, campos de cereais e vinhas, por exemplo, sendo que nenhuma destas culturas é particularmente favorável à presença das cigarras”, conclui.

Além da perda de habitat, o uso de pesticidas e a urbanização crescente constituem ameaças à conservação das cigarras. Isto porque estes animais passam um ou mais anos enterrados durante a fase ninfa (estágio juvenil) – consoante a espécie, podem mesmo estar debaixo de terra até 17 anos –, alimentando-se da seiva de raízes. Só emergem do solo durante as semanas estivais para a reprodução ou morte (as fêmeas morrem após depositar os ovos em troncos de árvores). Assim, a aragem ou impermeabilização dos solos não são benéficas para estes animais, cujo ciclo de vida implica passar grande parte da existência num mundo subterrâneo.