Contra transição energética injusta, movimentos criam Rede Global Antiextractivista

Rede Global Antiextractivista teve primeira acção internacional no domingo, com participação do movimento antimineração de Covas do Barroso, Boticas. “Não às minas, sim à vida”, continua a apelar.

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A primeira acção da Rede Global Antiextractivista teve lugar a 18 de Agosto em Covas do Barroso (Boticas), entre várias cidades Jan Kleinpeter / Tiago Patatas / Katerina Papageorgaki
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Foi lançada neste domingo, “com alegre insubmissão”, a Rede Global Antiextractivista, uma iniciativa que junta movimentos de vários países contra projectos locais de mineração que “ameaçam destruir modos de vida e territórios por todo o mundo”.

A rede, que reúne comunidades e movimentos sobretudo europeus – da Alemanha, Espanha, França, Portugal e Sérvia –, mas também de países como a Argentina, tem como objectivo a coordenação internacional de acções conjuntas de “combate às práticas predatórias do extractivismo”. “Para defender os nossos territórios, vemo-nos obrigados a enfrentar gigantes”, lê-se no comunicado da rede, que denuncia “uma transição energética injusta e motivada pelo lucro”.

Durante o Acampamento em Defesa do Barroso, organizado pela associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso, a “celebrAcção” iniciou-se no final da tarde de domingo com uma marcha na freguesia de Covas do Barroso, prosseguindo com performances de teatro e música e culminando na leitura do manifesto da recém-criada rede global.

No cancioneiro do Barroso, há clássicos de intervenção, como A cantiga é uma arma, de José Mário Branco, Venham mais cinco, de Zeca Afonso, ou Que força é essa, de Sérgio Godinho, mas também algumas adaptações locais, como a Moda dos sacanas, onde se canta “Oh Savannah vem à janela / ver o povo unido ai ai ai que ele vai à guerra”.

No mesmo dia, além das celebrações no Barroso, houve acções da rede na Alemanha, Espanha e França. Nas piscinas naturais de Villasbuenas de Gata, em Cáceres (Espanha), por exemplo, a Plataforma Sierra de Gata Viva organizou espectáculos solidários, uma mesa-redonda e uma gravação da leitura do manifesto internacional.

Ponto de encontro

No Barroso, encontram-se por todo o lado as palavras de ordem: “Não às minas, sim à vida.” Numa faixa colocada sobre uma carrinha com matrícula de 1999, alguém escreveu: “Queremos um mundo onde cabem muitos mundos”. O Acampamento em Defesa do Barroso, que teve este ano a sua quarta edição, já se tornou um ponto de encontro anual para reflectir sobre o impacto da transição energética e do “sistema extractivista”.

“Do Barroso à Palestina, a terra a quem a trabalha”, lê-se na faixa que marca o espaço principal de palestras, sob um grande toldo branco, localizado ao lado do Polidesportivo de Covas do Barroso. A abertura da comunidade local para acolher espaços de encontro é uma das marcas que atraem pessoas de vários países.

Tal como muitos outros activistas que se juntaram ao movimento nos últimos anos, a francesa Paloma Ruiz já se tornou uma barrosã por afinidade, tendo sido “adoptada pelas comunidades” ao decidir ficar na região. Chegou ao Barroso através da luta internacionalista, aquando da visita dos zapatistas a Portugal, em Novembro de 2021.

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“Esta luta é de todos, não de dois ou três”, entoa a canção Hora de lutar, da autoria de Carlos Libo Jan Kleinpeter / Tiago Patatas / Katerina Papageorgaki

“Cada território está em contacto com outros”, descreve Paloma Ruiz, notando que a comunidade contou sempre com entreajuda a nível internacional. A nova rede global, uma constelação de movimentos “antimineração e em defesa da vida”, vem assim criar lugares para cultivar esse rizoma de solidariedade. Um dos primeiros projectos em conjunto será a realização de um documentário, para registar a luta das comunidades nos vários países.

Transição energética não tem sido transição ecológica

A transição energética em curso, alertam os activistas, “não é uma tentativa de transição ecológica”, mas antes um conjunto de narrativas para tentar “compatibilizar novas exigências sociais” com o statu quo. A ideia é expressada por Diogo Sobral, estudante de doutoramento na área da antropologia e um dos representantes da nova rede antiextractivista. “Estes projectos de mineração são fruto de uma articulação entre Estados e o mercado”, explica, sublinhando o papel de destaque dado às empresas, em particular a grande indústria.

As comunidades, que se sentem excluídas dos sistemas de decisão, identificam mesmo uma “grande insuficiência democrática” no processo de elaboração de legislação como o novo Regulamento Europeu das Matérias-Primas Críticas (Critical Raw Materials Act). “É o poder a dizer qual é o problema – causado pelo poder – que terá como única solução, supostamente, uma acção do poder”, resume Diogo Sobral.

Coloca-se a questão: quais são, então, as soluções alternativas para a transição necessária para reequilibrar o clima do planeta? “Essa pergunta parte do pressuposto de que a transição energética que as empresas e os Estados propõem é uma solução”, responde o activista. Há uma falta de “coerência” nas propostas do actual sistema, por exemplo, quando apregoa que a transição é um “imperativo incontornável” enquanto as “viagens de jactos privados continuam intocáveis”.

Resistência à resistência

E há ainda a violência com que esse sistema por vezes responde à resistência das populações.

À medida que conhecem outras realidades, em particular fora da União Europeia, torna-se claro que não é possível olhar para todos os territórios da mesma forma: “O capitalismo e o extractivismo não mordem com a mesma força em todos os sítios do mundo”, afirma Diogo Sobral. Em contextos como a América Latina, por exemplo, abundam as histórias de defensores ambientais ameaçados, presos, sequestrados ou mesmo mortos. “O extractivismo arreganha os dentes de forma diferente, dependendo da latitude”, reforça, lembrando que há “nortes” e “suis” tanto no Norte como no Sul global.

Como se ouve na canção Brigada da foice, da autoria de Carlos Libo, “O Abril está tão distante / Ninguém se lembra de vós / Estais esquecidos a um canto”. Mas estes territórios não querem ser esquecidos nem aceitam tornar-se “zonas de sacrifício”. “Estas lutas antiextractivistas têm que ser muito focadas no local”, ressalva Sobral. Para os movimentos, explica, é importante que a reflexão sobre a transição energética seja feita a partir das comunidades, fugindo a um olhar abstracto e “estatístico” sobre os territórios.

E que melhor lugar para fazer este debate do que no seio de “comunidades com uma longa história de gestão racional dos recursos”?

Para Catarina Alves Scarrott, nascida no Barroso, há ainda uma questão de justiça – ou injustiça – ambiental que é óbvia. “Como é que se pode pedir a uma comunidade como a nossa, que sempre viveu de forma sustentável, para pagar o preço da sociedade consumista? Porquê nós? E para quê?”

Coordenação internacional

Há outra questão que inquieta os cidadãos que se juntam aos movimentos locais: estão a lutar contra uma mina ou contra o extractivismo?

Para Diogo Sobral, é legítimo que as populações escolham lutar apenas contra projectos no seu "quintal" uma postura conhecida pelo acrónimo NIMBY, “not in my back yard”. Mas, enquanto leitura política, trata-se de uma “narrativa curta” para compreender e combater o sistema a nível internacional. “Pode conseguir-se fechar uma mina, mas o extractivismo encontra um portão fechado e vai procurar outro”, alerta.

“A luta nunca acaba… As empresas é que vão embora, mas as jazidas minerais ficam ali.” A observação é de Jóam Evans Pim, do Observatório Ibérico da Mineração (Minob), durante o seu relato sobre as lutas antimineração na Galiza.

O investigador dá destaque à Convenção de Aarhus, sobre o acesso à informação, participação pública nos processos de tomada de decisão e acesso à justiça em matéria de Ambiente, para falar sobre as lacunas nos projectos que têm vindo a ser apresentados e sobre a legitimidade da resistência das populações a processos que consideram ser pouco transparentes.

Jóam Pim alerta, por fim, que, na sequência da aprovação do Regulamento Europeu das Matérias-Primas Críticas, “vem aí um tsunami de projectos de mineração” mas garante também que, agora, “será recebido com muito maior preparação das populações”.