Em Matosinhos, na rota da arquitectura da sardinha

Onde acaba o mar? A pesquisa de André Tavares e Diego Inglez de Souza tira-nos da praia e leva-nos em descoberta do que resta da arquitectura do peixe, pelo interior das ruas de Matosinhos-Sul

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Fachada da conserveira Pinhais & C.ª, em Matosinhos
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Matosinhos arquitectura do peixe e das pescas
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Matosinhos arquitectura do peixe e das pescas
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Aprendi em criança que o mar não acaba na praia. Aprendi à força, nas noites de Inverno, em que o vento o empurrava portas adentro, para salgar os meus pesadelos de filho de pescador. Aprendi com o cheiro a peixe da fábrica ao pé de casa, fedor entranhado nas ruas e na roupa da minha mãe, a cada fim de turno na fábrica de conservas. É um cheiro que desapareceu do meu quotidiano, mas que não se esquece, porque se entranhou, imagino que para sempre, na minha memória.

“O Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim” de Sophia inspira literatura e música, define quotidianos, instiga identidades, gera mitos, galgando um sem-fim de domínios das nossas vidas. E mete-se onde menos se espera. André Tavares, arquitecto, e Diego Inglez de Sousa, arquitecto e urbanista, andam há uns anos a estudar a arquitectura, sim, leu bem, arquitectura, que nos chega do oceano. À boleia de um livro que escreveram, fui com eles à procura do mar, pelas ruas de Matosinhos.

Publicado em 2022, pela Dafne Editora, Arquitectura do Bacalhau e de Outras Espécies é um daqueles livros que mexe com os sentidos de quem se interessa pelo mar e pela pesca. Mexe, desde logo, porque nos põe a olhar para terra. “É óbvio que um peixe não constrói edifícios, mas as suas características biológicas geram arquitectura”, garantem os dois investigadores da Faculdade de Arquitectura do Porto, no prólogo dessa viagem por territórios da costa portuguesa onde esse fenómeno de mistura de águas entre a ecologia e a arquitectura foi mais evidente.

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Os arquitectos Diego Inglez de Souza e André Tavares são autores do livro "Arquitectura do Bacalhau e de Outras Espécies" e os cicerones desta visita. José Sérgio

Matosinhos é um desses lugares, e é lá que nos encontramos para uma visita guiada. Não vamos atrás dos restaurantes onde se serve, garante-se por aqui, o melhor peixe do mundo, nem ao bairro dos pescadores ou ao cais no porto de pesca, onde me perderia, na conversa, com os amigos e familiares que lá encontraria junto às traineiras. O campo de estudo de André e Diego é outro, é o de uma arquitectura influenciada pelas características do peixe, pelos modos de o pescar e possibilidades de consumo e conservação de cada espécie.

Rumo a Matosinhos-Sul

Saímos da estação de metro da Câmara Municipal, na Avenida da República. Vamos em direcção a Matosinhos-Sul, zona que no século XXI foi reconfigurada, com edifícios de habitação e comércio a erguerem-se sobre as ruínas de uma arquitectura industrial com alicerces no mar. Poucos minutos a pé nos separam do Porto de Leixões, que a partir do final do século XIX destronou a Póvoa de Varzim como maior porto sardinheiro e, ao longo do século XX, fez da cidade o grande centro da indústria conserveira do país, suplantando, neste caso, o Algarve e Setúbal.

É difícil imaginar, hoje, o que eram estas ruas há mais de cinco décadas, no auge dessa industrialização. Seguindo um plano de expansão urbana contemporâneo ao porto recém-criado, ao longo dos anos 1900 por aqui se instalaram dezenas de fábricas de conservas, sustentadas pela disponibilidade de peixe e pelos cardumes de gente que, de norte e de sul, procuravam trabalho em Matosinhos. Homens pescando, mulheres enlatando um dos mais conhecidos produtos de exportação portuguesa.

Desse tempo, no coração da cidade conservam-se duas fábricas em operação: a Portugal Norte, criada em 1912, e a Pinhais, de 1920. E é em frente a esta, no cruzamento entre a Avenida Menéres e a Avenida Comendador Ferreira de Matos, que fazemos uma primeira paragem, para observar o edifício de linhas clássicas, que reflecte uma ampliação do pós-II Guerra. De pé, a funcionar e de portas abertas a visitas, a Pinhais já partilhou a rua com várias unidades. O que resta da fábrica das Conservas Vasco da Gama, em frente, foi adquirida pelo município, aguardando verbas para ser, um dia, um museu da língua.

Dizem-me os meus cicerones que a área das instalações da Pinhais equivale ao perímetro de uma rede de cerco, no mar. Não terá sido intencional essa métrica, mas a capacidade de produção foi pensada, de facto, para assegurar o processamento de um cardume por dia, numa época em que as traineiras chegavam ao porto a transbordar de peixe pelo convés, e o distribuam por quase meia centena de unidades, a grande maioria delas instalada a sul da Avenida da Avenida da República.

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O edifício da antiga Joana D'Arc vai ser recuperado, mantendo o volume e aspecto original, para um projecto de escritórios flexíveis José Sérgio

No quarteirão seguinte, a poente, espreitamos para o interior esventrado da antiga fábrica Joana D’Arc, que detinha marcas como a Celestial e a Auspiciosa, e que está em obras. Neste momento sobra-lhe a fachada e a chaminé, mas segundo a empresa promotora, o edifício, que estava em avançado estado de degradação, vai ser recuperado integralmente, mantendo o volume e aspecto original, dando lugar a um projecto de escritórios flexíveis que irá abrigar várias multinacionais.

A arquitectura a seguir o peixe

A sardinha é um bicho que ainda guarda os seus segredos. Sofre, como outras espécies, com a sobrepesca, mas às vezes desaparece sem se saber com exactidão porquê. E foi um desses fenómenos prolongados de escassez, na Bretanha, no século XIX, que atraiu para Portugal, e para Setúbal, mais concretamente, investidores franceses que ajudaram a desenvolver a indústria na baía do Sado e no país.

No Algarve, os principais protagonistas eram andaluzes e italianos, essenciais para o estabelecimento desta actividade, quando Matosinhos nem sonhava em ser o que se tornou. E aquilo que se tornou tem também que ver com a evolução das pescarias ao longo da costa portuguesa pois, como explica Diego, a dado momento, na década de 1920, faltava peixe para tanta indústria instalada em Setúbal, enquanto a moderna frota do cerco que aportava em Leixões tinha dificuldade de escoar tudo o que trazia para terra, por falta de capacidade industrial.

Deixamos a Pinhais para trás e seguimos em linha recta, em direcção ao mar. Pelo caminho, em frente à Casa da Arquitectura, passamos por um edifício de habitação branco, que ainda revela a volumetria e o ritmo dos elementos da fachada da antiga fábrica Activa. Vamos na rota dos primórdios da chegada das grandes conserveiras ao Norte, desse tempo em que a indústria – e a arquitectura – seguia o peixe.

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A fábrica da Conservas Pinhais & C.ª foi construída em 1920. Em 2021, um ano após completar o seu centenário, reabriu como um museu vivo dedicado à memória da indústria conserveira. José Sérgio
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"Arquitectura do Bacalhau e de Outras Espécies", publicado em 2022, pela Dafne Editora, é um daqueles livros que mexe com os sentidos de quem se interessa pelo mar e pela pesca. José Sérgio

No cruzamento da Avenida Menéres com a Roberto Ivens, a Heróis de França e a Rua Carlos de Carvalho, nada resta da primeira grande unidade industrial da cidade, a Lopes Coelho e Dias, que abriu em 1899, nem da moderna fábrica que lhe sucedeu, projectada pelo gabinete de arquitectura ARS, nos anos 40, e inspirada em inovações industriais desenvolvidas na Galiza. Outro edifício de habitação tomou também o lugar da filial de Matosinhos da Brandão Gomes e Companhia (1904), cuja representação, num grande quadro, encontrei quando visitei a antiga sede da empresa e actual museu de Espinho, para a segunda destas crónicas.

No meio deste cruzamento de ruas onde o país conserveiro se cruzou em tempos, apenas meio quarteirão vazio, expectante, sobra de outras fábricas cujos nomes denunciam a respectiva origem e a atractividade de Matosinhos, no contexto nacional, na primeira metade do século passado. Aqui se instalaram a Rainha do Sado, e a Algarve Exportador, que funcionou num edifício de estilo modernista desenhado por António Varela. A fábrica chegou a ser alvo de uma proposta de classificação, mas acabou demolida. Foram-se as conservas, ficou o espaço para mais um restaurante de fast-food e um novo prédio de habitação, em construção.

Seguimos para norte, num percurso paralelo ao mar, que está perto, mas não consegue vencer o ruído do trânsito. Passamos por esplanadas e grelhas em pausa entre o almoço que passou e o jantar que há-de vir; passamos por portões atrás dos quais ainda vislumbro o que resta de uma ou outra ilha, casario pobre, de parcas condições, onde outrora se amontoavam famílias de pescadores e operárias fabris.

Ainda queremos ir ao porto, observar as qualidades estéticas de um armazém frigorífico abandonado, betão a fazer lembrar a arquitectura brutalista, que se tornou obsoleto e, segundo Diego, deverá também vir a ser demolido pela Docapesca, no âmbito da requalificação desta área portuária. E haveremos de nos despedir aqui, num parque de estacionamento, perante a imponência deste edifício moribundo, no qual nunca tinha reparado. Se a arquitectura do peixe existe, este é um belo exemplar, respondendo à necessidade de gelo para a sua primeira conservação, no mar.

Aprendi com André Tavares e Diego Souza que cada peixe tem a sua arquitectura. Se o bacalhau aguentava meses salgado nos navios da frota branca, e pedia espaços para a sua secagem em terra, com ventos favoráveis, a sardinha tinha de ser conservada de imediato, por ser rica em ácidos gordos, e susceptível, por isso, a apodrecer rapidamente. E esse factor biológico explica a profusão de fábricas a minutos de distância dos portos de pesca; explica as sirenes chamando as mulheres para turnos noite dentro, em época de fartura, explica o cheiro expelido pelas chaminés dos fornos de cozedura, que nunca esqueci.

Para lá das crises que ciclicamente abalaram esta indústria – que, ao estimular o aumento da capacidade de pesca, interferiu também na disponibilidade da sardinha – a redução do número de fábricas reflecte ganhos de eficiência no processo de produção. E resulta também de um outro facto que mudou a relação entre os portos e a sua envolvente: o advento da congelação.

Na verdade, explica-me Diego, as quatro fábricas que ainda funcionam em Matosinhos hoje em dia conseguem produzir mais latas do que as dezenas de unidades fabris que havia na cidade em meados do século passado, e já não dependem das pescarias nacionais, que sofreram um rombo nas quotas, na última década e meia, para fazer face a uma crise de stocks no mar. Se a matéria-prima antes lhes chegava por Leixões, hoje chega por essa via e também por terra, vinda de Espanha, França ou Marrocos. A rota do peixe é outra e, com ela, aprendi, vai mudando a arquitectura que a partir dele se faz.

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