O Vale da Morte está cada vez mais quente. Como se sobrevive com 51 graus Celsius?

Julho foi o mês mais sufocante registado, com uma temperatura média de 42,5 graus Celsius, valor que inclui as noites com 35 graus. Durante nove dias seguidos, a temperatura foi de 51 graus ou mais.

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Visitantes no Badwater Basin, no Parque Nacional do Vale da Morte, no Vale da Morte, Califórnia Bridget Bennett/The Washington
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No início do ano, quando tanta água inunda este lugar que caiaques podem flutuar através dele, ou mais tarde, quando suas colinas explodem com cores radiantes, o apelido Vale da Morte pode parecer um equívoco. Mas nos meses de verão - que são cada vez mais quentes, batendo recordes quase todos os anos - Death Vally faz jus ao seu nome.

Para os turistas e os habitantes de segundas residências, o calor infernal é uma novidade. Mas os residentes a tempo inteiro têm de viver com as temperaturas extremas no Vale da Morte dia sim, dia não. E ultimamente, está a tornar-se mais difícil.

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Trabalhadores Austin Smith, à esquerda, e Keshav Boddula embrulham tâmaras durante um dia de trabalho na China Ranch Date Farm em Tecopa, Califórnia Bridget Bennett/The Washington Post

"Tem-se a sensação de que não se consegue arrefecer", disse Brian Brown, proprietário e gestor da China Ranch Date Farm em Tecopa, uma pequena comunidade rural perto do extremo sul do Parque Nacional do Vale da Morte. "Faz-me duvidar da minha sanidade mental."

Em Julho, o local mais quente e seco da América superou-se a si próprio. O mês passado foi o mais sufocante alguma vez registado, com uma temperatura média de 42,5 graus Celsius, um valor que inclui os mínimos nocturnos, que raramente desceram abaixo dos 35 graus. Durante nove dias consecutivos, o mercúrio atingiu 51 graus Celsius ou mais.

Seis dos verões mais quentes no Vale da Morte ocorreram durante a última década e, como o clima continua a aquecer em todo o mundo, o recente mês recorde da região pode ser um postal do futuro.

Algumas centenas de pessoas vivem aqui durante todo o ano, espalhadas por uma constelação de comunidades desérticas que fazem fronteira com o parque nacional e que também têm nomes apropriados como Furnace Creek [Ribeiro do Forno, numa tradução literal] e Stovepipe Wells [Poços de Fogão, numa tradução literal]. E, embora os habitantes locais nunca tenham esperado que a vida neste ambiente extremo fosse fácil, as oscilações meteorológicas cada vez mais selvagens - da seca às cheias e ao calor sufocante - fazem com que alguns se questionem sobre quanto tempo conseguirão aguentar.

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Brian Brown, proprietário e operador da China Ranch Date Farm, embrulha as tâmaras para as proteger dos pássaros e do sol Bridget Bennett/The Washington Post

"Isto atinge duramente as comunidades rurais desfavorecidas", disse Patrick Donnelly, que vive a alguns quilómetros a norte de Tecopa, em Shoshone, e trabalha como director da Grande Bacia do Centro para a Diversidade Biológica. "Parece que estamos a aguentar-nos pelas unhas, a ser chicoteados por todos estes extremos."

'Implacável'

O calor é a principal causa de mortes relacionadas com o clima nos Estados Unidos, e é especialmente letal no Vale da Morte. Os governos locais emitem avisos, e os quadros de avisos dos parques estão cobertos de avisos terríveis como "O CALOR MATA!" e "Não se torne uma vítima do Vale da Morte". Para aqueles que decidem prosseguir na mesma, um lembrete final: "Viaje preparado para sobreviver".

"É uma experiência física chocante estar sob aquele calor", disse Alexandra Heaney, professora de saúde pública na Universidade da Califórnia em San Diego. "Quando se sai à rua, parece que se está num forno de convecção."

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Vegetação desértica ladeia uma estrada em Tecopa Bridget Bennett/The Washington Post

Os acidentes mortais são os que chamam mais a atenção, mas o calor representa um vasto leque de riscos para a saúde, lembra Heaney. Num documento de trabalho, a especialista e os seus colegas descobriram que o aumento das temperaturas leva a um aumento das visitas às urgências devido a uma série de causas, incluindo lesões acidentais, problemas de saúde mental e problemas do sistema nervoso. E no Vale da Morte, onde o hospital mais próximo pode estar a mais de 60 quilómetros de distância, o acesso aos cuidados de saúde é complicado.

Quem trabalha no exterior com este tipo de clima - como Brown e a sua equipa no China Ranch - tem de ter cuidado. E têm também de ser um pouco criativos. Brown já passou por 45 verões aqui e acumulou alguns truques para passar esta altura do ano, quando os 25 hectares de tamareiras da quinta precisam de ser tratados meticulosamente.

A equipa começa cedo, por volta das 6 da manhã, e molha as suas camisas de trabalho num balde de água para se manterem frescas. Quando o calor árido as seca, voltam ao balde. A camada extra de tecido também defende contra as famosas mutucas [moscas de tamanho média, moscardos, que picam] da região, conhecidas como Tecopa bombers, que pululam durante o Verão.

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Brown faz uma pausa dentro de casa Bridget Bennett/The Washington Post

Quando a água não é suficiente, refugiam-se no grande frigorífico do armazém vizinho, normalmente utilizado para armazenar tâmaras. "Este é o nosso lugar preferido", disse Brown, de pé no frigorífico numa recente tarde escaldante.

Outros métodos são mentais. Após o solstício, por exemplo, Brown recorda à sua equipa que cada dia seguinte será um pouco mais curto. No final de Julho, estavam a dois terços dos meses de pico do Verão, quando o sol brilha mais quente e durante mais tempo - quase lá.

O calor obrigou os bombeiros da região a irem para a linha da frente, respondendo a emergências provocadas pelo calor e lidando eles próprios com as elevadas temperaturas.

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Larry Levy, chefe interino do Distrito de Protecção contra Incêndios do Sul de Inyo, na sua casa em Tecopa, Califórnia Bridget Bennett/The Washington Post

O Distrito de Protecção contra Incêndios do Sul de Inyo, com poucos recursos financeiros, cobre cerca de 3200 km quadrados, depende de um punhado de voluntários idosos e não tem quartel de bombeiros. Isto significa que os veículos e o equipamento estão constantemente expostos ao calor, desgastando-se mesmo quando estacionados e inactivos, disse Larry Levy, o chefe interino do departamento.

O sol coze as mangueiras, rasga os pneus e derrete as ligaduras médicas. O calor torna tudo mais difícil e exigente, desde o combate aos incêndios até aos primeiros socorros.

"Não se pode fazer reanimação cardiopulmonar com este calor durante mais de um minuto ou dois antes de se precisar de reanimação", disse Levy, que aos 72 anos já se reformou uma vez e está à procura de alguém para o substituir como chefe.

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Sem um quartel de bombeiros, os veículos de emergência são armazenados no exterior e expostos aos elementos em Tecopa Bridget Bennett/The Washington Post

Levy vive com a sua mulher em Tecopa durante todo o ano há cerca de duas décadas e, por vezes, sente que ainda estão a tentar adaptar-se. O seu ritmo diário muda no Verão. Fazem longas sestas dentro de casa e mergulham numa fonte termal natural, que é comparativamente fresca quando o ar é sufocante. De manhã, Levy adiciona electrólitos à sua água e, à tarde, bebe sumo de toranja.

Um dos seus vizinhos, John Muccio, é um cozinheiro reformado e, quando o tempo se torna tórrido, sente o seu apetite mudar. A receita que o ajudou a atravessar o mês de Julho: salada de melancia, com pepino, hortelã fresca e uma pitada de queijo feta, coberta com um pouco de azeite e cebolinho.

Como muitos, Muccio abandonou o ar condicionado central depois de ter gasto milhares de euros em contas de electricidade, e agora depende de um refrigerador evaporativo para manter a sua casa pré-fabricada de duas paredes a uma temperatura tolerável. Mas o seu método mais infalível para vencer o calor é a fuga. Uma vez por semana, percorre os 90 quilómetros até Las Vegas para jogar póquer num casino, onde o ar condicionado agressivo é gratuito.

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Um parque de caravanas Tecopa quase vazio Bridget Bennett/The Washington Post

"Todos os anos vai ficar cada vez mais quente", disse Muccio, que se mudou para Tecopa em 2006. "Será muito interessante ver na próxima década ou duas se as pessoas ainda podem viver em lugares como este."

Os guardas florestais do Vale da Morte, a maioria dos quais vive em habitações do Serviço Nacional de Parques perto do parque, criaram as suas próprias estratégias para lidar com a situação. A água fria é rara no Verão, uma vez que até os canos subterrâneos sobreaquecem.

Abby Wines, uma guarda-florestal que trabalha no parque há 19 anos, uma vez mediu a água da sua torneira, supostamente fria, a 42 graus. Para ter um pouco de alívio, ela desliga o aquecedor de água quente e o tanque torna-se um reservatório que acaba por arrefecer até à temperatura ambiente. Ela saboreia os primeiros 45 segundos de um duche, quando a água está o mais fresca possível.

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Um sinal no início de um trilho diz "O calor mata!" e enumera pormenores sobre os riscos de calor extremo no Parque Nacional do Vale da Morte, Califórnia Bridget Bennett/The Washington Post

"Implacável é a única palavra que me ocorre para descrever o calor", disse Wines.

'Vale da Mudança'

Há apenas um ano, a região assistiu ao seu dia mais húmido de sempre, quando o furacão Hilary despejou mais de 5 centímetros de chuva, mais do que normalmente cai aqui durante um ano inteiro. Meses mais tarde, um rio atmosférico encharcou ainda mais a região. Estes acontecimentos invulgares deram origem a dois fenómenos naturais extraordinários: o reaparecimento do antigo Lago Manly e uma super floração no deserto.

Mas as tempestades também causaram estragos, destruindo quilómetros de estradas e tornando a vida mais difícil para as empresas que já lutavam para sobreviver num clima tão duro. Na Amargosa Opera House and Hotel, em Death Valley Junction, uma cidade fantasma a norte de Tecopa, o furacão e o calor foram como um golpe duplo.

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Ópera de Amargosa em Death Valley Junction, Califórnia Bridget Bennett/The Washington Post

Primeiro, as inundações infligiram pelo menos 23 mil euros de prejuízos, segundo as estimativas dos gestores da propriedade, arruinando paredes, alcatifas e pavimentos. Depois, o calor secou o fluxo de visitantes de que o hotel, ainda em funcionamento, depende para manter as suas portas abertas.

Actualmente, a casa de ópera é gerida por uma organização sem fins lucrativos, que se dedica a preservar a história e as obras de arte da sua excêntrica fundadora, Marta Becket. A pequena equipa sente-se por vezes presa numa batalha existencial com a natureza.

"É um desafio manter as operações quotidianas", disse Emilee Brown, a gerente do hotel, que tecnicamente vive no outro lado da fronteira do estado do Nevada, mas está tanto tempo no local que é considerada uma das duas residentes da cidade. "Resolve-se um problema e depois descobrem-se mais três. E depois resolve-se esses problemas e vêm as monções, ou o turismo abranda".

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Um aparelho de ar condicionado fica na janela do lobby do hotel Amargosa Opera House Bridget Bennett/The Washington Post

Ninguém tem lutado mais contra os elementos aqui do que os Timbisha Shoshone. A tribo viveu na região durante milhares de anos, deslocando-se historicamente do vale para as montanhas e vice-versa para sobreviver nos meses de Verão. Quando o governo federal confiscou a terra ancestral da tribo para estabelecer um monumento nacional na década de 1930, os membros lutaram pelo direito de ficar, acabando por ganhar uma pequena reserva dentro do que é agora o Parque Nacional do Vale da Morte.

Actualmente, cerca de 30 membros da tribo Timbisha vivem aqui a tempo inteiro, fazendo apenas pequenas viagens a altitudes mais elevadas, onde não têm casas. Muitos estão na casa dos 60 anos ou mais, e a maioria reside em atrelados mal equipados para as condições adversas. Mandi Campbell, oficial de preservação histórica da tribo, disse que o interior do seu pode chegar a 37 graus. Alguns dos atrelados são cedidos pela Agência Federal de Gestão de Emergências, que os utilizou nos esforços de recuperação de catástrofes, disse Campbell. O deserto entranha-se facilmente no interior.

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Mandi Campbell, responsável pela preservação histórica da tribo Timbisha Shoshone, posa para uma fotografia perto da sua casa em Death Valley Bridget Bennett/The Washington Post

"Estamos constantemente a limpar", disse ela, "e podemos sentir o sabor da areia dentro de casa".

Os membros esperam que um casino tribal, planeado para uma cidade vizinha, acabe por trazer rendimentos suficientes para pagar habitações mais resistentes. Para Campbell, o calor não é algo para riscar de uma lista de desejos - é um desafio perigoso e diário.

"Isto não é para brincadeiras", diz ela. "Vivemos aqui toda a nossa vida. É preciso ter muito cuidado no Verão."

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Habitação fabricada em terras Timbisha Shoshone no Vale da Morte Bridget Bennett/The Washington Post

As alterações climáticas também puseram em perigo as práticas antigas dos Timbisha, centradas nas árvores de pinheiro e de algaroba, que estão a secar e a morrer. Ainda assim, os Timbisha vão ficar, disse Campbell, porque é o seu lar. E, de qualquer forma, aqueles que só conhecem o lugar quando ele está menos hospitaleiro ficam com a ideia errada, disse ela.

"Não deveria ser o Vale da Morte, porque não é nada parecido com a morte", disse ela. "Para nós, é o 'Vale da Mudança'."

Especialmente este ano.