Época balnear de 2024 perto do recorde recente de episódios de poluição

Apesar de casos de contaminação serem uma minoria e as praias com águas de qualidade excelente representarem a grande fatia, peritos defendem o alerta: as pessoas “estão expostas sempre a um risco”.

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É importante que os veraneantes estejam conscientes dos riscos que correm quando vão à praia Nelson Garrido
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A época balnear vai a meio, mas as idas e vindas de desaconselhamentos e interdições das praias portuguesas, associadas geralmente a questões microbiológicas, já tornaram 2024 o segundo pior ano dos últimos sete em relação à poluição nas praias. Ao todo, houve 84 episódios de desaconselhamentos ao banho e interdições em praias balneares em Portugal continental até 7 de Agosto, segundo os dados anuais disponibilizados desde 2018 pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) ao PÚBLICO. Esse é um número que fica somente abaixo dos 94 casos de 2022 e por isso facilmente ultrapassável nas próximas semanas, possibilitando alcançar-se um recorde recente para este ano.

Perante esta realidade, a Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável alertava para o “agravamento da qualidade de água nas praias”, num comunicado lançado na semana passada que obrigou a APA a responder horas depois. “A razão do número mais expressivo de restrições ao banho em 2024 deve-se aos episódios de precipitação que têm ocorrido este Verão e que evidenciam as deficiências ainda existentes nos sistemas de tratamento e, sobretudo, de drenagem de águas residuais”, lê-se no comunicado da agência.

Estas chuvas extemporâneas podem provocar a escorrência de fezes de pecuária no contexto rural, ou fezes de cães, gatos e até das gaivotas, num contexto mais urbano, para cursos de água ou directamente para as águas do mar. Além disso, quando os sistemas de drenagem de águas pluviais e de águas residuais domésticas estão de alguma forma conectados, os caudais excessivos causados pela chuva podem transportar resíduos vindos das águas domésticas, potenciando a poluição.

As praias que mais sofrem com aquelas situações são as praias interiores e as praias urbanas costeiras, como é o caso da de Matosinhos, que nesta época balnear já teve vários episódios de desaconselhamento a banhos e chegou a ficar interdita de 2 a 7 de Agosto, de acordo com a informação no Sistema Nacional de Informação dos Recursos Hídricos (SNIRH).

Chuva fora de época

“O que este ano tem de diferente é que tem chovido fora de época e a nossa experiência diz que pode chover um pouco e uma praia como a de Matosinhos apresenta imediatamente um sinal de contaminação por fezes”, explica ao PÚBLICO Adriano Bordalo e Sá, hidrobiólogo e professor no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto, que há décadas investiga a poluição microbiológica nos sistemas aquáticos e conhece de perto a realidade daquela praia.

A contaminação por fezes, humanas e de outros animais, é indicada pela presença de bactérias Escherichia coli e de enterococos intestinais, os dois microrganismos cuja análise é obrigatória de acordo com a directiva europeia de 2006/7/CE, relativa à gestão da qualidade das águas balneares, transposta para a legislação portuguesa em 2009.

“Entre o Minho e Vila Real de Santo António, temos dezenas e dezenas de linhas de água a drenarem para os areais ou para o mar. Com a concentração das pessoas cada vez maior no litoral e com o facto de o problema de esgotos estar longe de estar resolvido em Portugal, parte destas linhas de água drenam os mesmíssimos dois indicadores de contaminação fecal sinalizados por Bruxelas”, adianta o investigador, responsável em Portugal por uma experiência pioneira de sensores que analisam a poluição nas praias em tempo real.

Em grandes quantidades, estas bactérias podem causar vários tipos de infecções e problemas gastrointestinais. Por isso, se as análises às águas balneares feitas pela APA identificarem valores daqueles organismos acima de certas concentrações – mais altas para as águas interiores do que para as águas costeiras –, a APA faz o desaconselhamento ou proibição do uso daquelas águas. No entanto, quem faz a interdição das praias, a partir dos dados gerados pela APA, são os delegados de saúde regionais. A existência de salmonelas, mais comuns nas águas das praias interiores, também gera a interdição daqueles espaços. Mas a responsabilidade de realizar as análises de salmonelas é do Ministério da Saúde.

Além disso, tanto a APA quanto os delegados de saúde podem fazer, respectivamente, desaconselhamentos e interdições por precaução. Isto pode ocorrer quando existem obras na praia ou “face a uma situação de risco de contaminação da água balnear que até pode, posteriormente, não se concretizar”, como quando ocorre um evento de precipitação muito intensa, refere a APA ao PÚBLICO.

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Números desencontrados

Estes casos representam uma minoria. Se desdobrarmos os 84 casos de 2024 que ocorreram até 7 de Agosto, 33 são desaconselhamentos, quatro destes por precaução e 51 são interdições, sendo apenas uma por precaução.

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Aqueles dados não correspondem aos números apresentados no comunicado da Zero, que tiveram como base uma análise da tabela do SNIRH da actual época balnear. Segundo a associação ambientalista, até àquela data, houve 46 praias que tiveram o banho desaconselhado ou proibido e 41 praias foram interditas, numa soma de 87 casos.

O desencontro dos números tem uma razão de ser. “Quando o símbolo de desaconselhamento está associado a um período de interdição pelo delegado de saúde regional, esta última tem procedência sobre o desaconselhamento e é contabilizada apenas a interdição”, explica a APA, acrescentando que como no SNIRH o símbolo do desaconselhamento mantém-se, aferir os episódios naquele sistema “não é a melhor metodologia de contabilização”.

Tudo isto dificulta fazer uma avaliação da situação das praias ao longo dos anos, adianta ao PÚBLICO Francisco Ferreira, presidente da Zero. “Tenho de ter alguma coerência na comunicação. Esse é um dos elementos fundamentais a ultrapassar”, defende o ambientalista, que não esquece o estado geral da qualidade das águas balneares portuguesas. “Temos uma percentagem muito elevada de praias excelentes”, elogia.

De facto, ao longo dos últimos anos, a percentagem de praias excelentes e boas mantém-se muito alta e não tem variado, de acordo com o documento sobre as águas balneares de Portugal publicado em Maio último pela Agência Europeia do Ambiente. Em 2023, no caso das praias costeiras e de transição tanto das ilhas, como do continente, 91,9% das 509 praias eram excelentes e 4,3% eram boas. No caso das águas interiores, 67,7% das 158 eram excelentes e 22,2% eram boas.

Estas avaliações são feitas a partir dos resultados dos quatro anos anteriores de análises. Qualquer praia balnear tem que ser analisada pelo menos quatro vezes por cada época balnear, de acordo com as regras europeias. A frequência dependerá de factores como a qualidade da água e das pressões de poluição existentes. “Uma água balnear com classificação ‘excelente’ poderá ser amostrada uma vez por mês, enquanto uma classificada como , poderá ter uma amostragem semanal”, explica a APA.

Através dos dados da APA dos últimos sete anos (a agência não conseguiu disponibilizar ao PÚBLICO dados contínuos mais para trás), verifica-se um maior número de casos de desaconselhamentos e interdições de 2021 em frente. No entanto, episódios esporádicos de poluição podem não ser contabilizados para a avaliação de cada praia, de acordo com as regras europeias.

Para Francisco Ferreira, a percentagem de episódios de praias desaconselhadas ou interditas este ano não é desprezível, “principalmente se tivermos em conta a dominância das praias interiores”, diz. Só no mês de Julho, 7,94% das 516 praias do continente sofreram esses episódios, segundo a APA: 19 foram desaconselhadas e 22 interditas. Quinze das 22 praias interditas foram interiores, 11 devido à presença em excesso de Escherichia coli e/ou enterococos intestinais e quatro devido a salmonelas.

Um património a valorizar

A APA refere, no entanto, que o momento de avaliação desta época balnear só deve ocorrer depois de ela terminar. “Qualquer conclusão sobre a evolução da qualidade das águas balneares durante a época balnear de 2024 será, neste momento, extemporânea e especulatória”, de acordo com o comunicado. Em resposta ao PÚBLICO, a agência vai mais longe: “A comparação entre épocas balneares e a análise de eventuais tendências deverá ter em conta a ocorrência de episódios de precipitação durante a época balnear, bem como as outras razões subjacentes que se foram verificando ao longo dos vários anos em análise.”

Mas os peritos que falaram com o PÚBLICO não estão inteiramente de acordo com a posição da agência. Apesar de consentir que só no final da época balnear é que é possível fazer uma avaliação total, Francisco Ferreira vê vantagens em levantar a questão agora. “Posso fazer uma avaliação provisória e é legítimo fazê-la. É durante a época balnear, quando temos problemas, que as pessoas sentem que há questões a resolver, não é em Outubro que vou fazer um alerta à população”, justifica.

Adriano Bordalo e Sá também valoriza o alerta da Zero, já que “é importante que [este tema] venha a público”, diz. Em relação ao carácter excepcional que a APA dá aos episódios de precipitação, o investigador é crítico: “As pessoas vão na mesma à praia, independentemente se no dia anterior choveu ou não. Estão expostas sempre a um risco. Não vejo razão nenhuma para não comparar, porque, ainda por cima, com as alterações climáticas, a precipitação é cada vez menos previsível.”

Mas mais do que comparar os episódios de poluição de um ano para o outro, o investigador defende que é necessário estudar os fenómenos que fazem variar a qualidade da água. E isso exige uma maior frequência de análises. “A qualidade [da água] pode variar de maré para maré, de hora para hora”, defende o investigador, acrescentando que os dados oficiais reflectem a realidade oficial, que pode estar longe daquilo que está a ocorrer, de facto, no terreno. “Isto só pode ser visto com um olhar científico, não burocrático.”

A partir daí, será necessário controlar aquilo que é possível controlar, como a carga fecal existente nos rios e ribeiros, aponta. Mas há outras causas. “Com base nos nossos dados, uma parte importante dos indicadores [de contaminação] são de origem animal e nomeadamente das aves. É preciso fazer um controlo das aves costeiras, nomeadamente das gaivotas, que estão completamente descontroladas”, diz.

Para Adriano Bordalo e Sá, é importante que a saúde pública esteja assegurada e que os veraneantes estejam conscientes do risco a que estão sujeitos quando põem o pé na água: “Ir à praia está no nosso imaginário. Temos um bem que deve ser estimado e protegido. As pessoas têm de ir à praia e tem de ser seguro do ponto de vista de saúde pública. Porque tem também múltiplos benefícios para a saúde física e mental. Os governos deviam olhar para este património com outros olhos.”

A APA disponibiliza a aplicação Info Praia que informa diariamente que praias é que são desaconselhadas ou estão interditas.

Notícia corrigida às 23h56: a última declaração é do investigador Adriano Bordalo e Sá e não de Francisco Ferreira, como estava previamente escrito.