Debi Cornwall retrata o “nacionalismo militarizado” dos EUA

O último livro de Debi Cornwall, Model Citizens, revela as ficções e performances que moldam a identidade e cultura dos EUA, “uma terra violenta onde as pessoas já não partilham uma verdade comum”.

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O hastear da bandeira no comício republicano “Save America”, em Miami, Florida, EUA (2022) Debi Cornwall
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O desafio a que se propôs a fotógrafa Debi Cornwall é complexo. Utilizando os Estados Unidos como “caso de estudo” para se debruçar sobre um fenómeno que considera global, a norte-americana procura, no seu último livro, Model Citizens, o terceiro de uma trilogia, responder à difícil questão: “Como é que a encenação, a performance e a interpretação de papéis servem de base para a construção do conceito de cidadania numa terra violenta onde as pessoas já não partilham uma verdade comum?”

Vários ingredientes, alguns deles explosivos quando misturados, giram em torno desta premissa: construção histórica e cultural, cultura de massas, violência e pós-verdade. Num mundo convulso, dominado pela guerra e pela propaganda, onde os EUA assumem um papel dominante, a questão levantada pela fotógrafa não podia ser mais pertinente. Como se define a raiz histórica da cultura norte-americana? Como são transmitidos os valores dessa cultura aos cidadãos pelo Estado e instituições? De que forma é apreendida e replicada essa cultura pelos norte-americanos? Qual o custo dessa replicação para o país e para o resto do mundo?

O livro de Cornwall não responde às questões. Nem procura fazê-lo. Fornece, no entanto, pistas que podem servir de base a uma discussão que a fotógrafa considera premente e, desejavelmente, extensível a outras realidades nacionais. As fotografias que fez em museus, campos de treino militar ou policial e nos comícios republicanos encabeçados por Donald Trump traçam um retrato que, de forma mais intrincada do que evidente, toca as várias esferas da grande questão sobre a qual gravita o projecto.

Só nas primeiras páginas do livro, que foi editado em Maio deste ano pela americana Radius Books, há referências visuais ao atentado de 11 de Setembro de 2001 e à Guerra da Independência dos Estados Unidos (1775-1783), acontecimentos separados por mais de dois séculos de história; há alusões a simulacros de guerra e operações de controlo fronteiriço, a violência, morte, entrecortadas por manifestações exuberantes, folclóricas, de americanidade arrebatada da parte de cidadãos anónimos republicanos.

"Antes da Tempestade", no comício "Save America", do republicano Donald Trump, em Des Moines, Iowa, EUA, 2023 Debi Cornwall
Instalação alusiva ao 11 de Setembro, no JFK Special Warfare Museum. Ft. Bragg, Carolina do Norte, EUA, 2021 Debi Cornwall
Diorama “The Darkest Days of the Revolutionary War", patente no Museu da Revolução Americana, em Filadélfia, Pensilvânia, EUA, 2023 Debi Cornwall
"Number One". "As pessoas que marcaram presença no comício “Save America”, em Youngstown, Ohio, EUA, em 2022, levantaram as mãos, supostamente pela primeira vez de forma maciça num evento de Trump. Os dedos estendidos são interpretados como um símbolo de 'America First' ou então como referindo ao lema do grupo QAnon, que consiste em 'where we go one we go all' (WWG1WGA). Os presentes contaram-me que que o faziam para 'trazer Deus de volta' à vida da América, embora um deles usasse uma pulseira do QAnon." Debi Cornwall
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"Antes da Tempestade", no comício "Save America", do republicano Donald Trump, em Des Moines, Iowa, EUA, 2023 Debi Cornwall

Em entrevista ao Ípsilon, numa videochamada a partir de Brooklyn, nos arredores de Nova Iorque, onde reside, a fotógrafa diz que considera importante todo o trabalho visual que convide quem o vê a envolver-se na mensagem e no seu significado. É o que pretende com Model Citizens. “Não forneço uma história em que todos os pontos se interligam de forma inequívoca, perfeita”, explica. “Tento, sim, criar imagens que, combinadas entre si, entre textos e outros materiais, se complementem de forma inesperada, surpreendente ou mesmo chocante, e que convidem as pessoas a olhar, a reflectir.”

Um exemplo desse diálogo irreverente entre elementos de várias naturezas é a inclusão do poema The Unknown Citizen, do anglo-americano W.H. Auden (1907-1973), que pauta o livro em toda a sua extensão. Os versos que conversam com as imagens descrevem, de forma tão ácida quanto irónica, o perfil do cidadão ideal sob uma perspectiva institucional. “Segundo apurou o Instituto de Estatística, / Contra ele nunca existiu qualquer queixa oficial, / E todos os relatórios sobre a sua conduta confirmaram: / No moderno sentido de uma palavra velha, ele era um santo”, lê-se numa das páginas; na seguinte, em justaposição, uma fotografia realizada no contexto de um simulacro de uma acção de controlo de fronteiras descreve um “estrangeiro agressivo” (como é descrito na legenda da fotografia) que usa um sombrero e que se prepara para arremessar sobre a cabeça de um manequim vestido de guarda fronteiriço uma pedra de grandes dimensões.

Seguem-se imagens de soldados e agentes da polícia, em contexto de simulacro de operações, agredindo ou cerceando pessoas cuja aparência vai ao encontro de vários estereótipos de “estrangeiro”. A sombra do muro de betão que separa os Estados Unidos do México surge antes do remate cáustico, mais um verso do poema de Auden: “Pois em tudo o que fez [o cidadão] serviu a Grande Comunidade.”

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Do livro Model Citizens, de Debi Cornwall, editado em Maio de 2024 pela Radius Books

“É impossível vermos o ar que respiramos”?

Model Citizens, à semelhança das duas obras anteriores de Debi Cornwall – Welcome to Camp America, Inside Guantánamo Bay (2017) e Necessary Fictions (2020) –, é uma obra profundamente política. Os três livros formam uma trilogia em torno do mesmo grande tema, o da cultura militarizada dos EUA, mas sob diferentes ângulos.

O primeiro volume foi desenvolvido ao longo de três anos no interior do centro de detenção norte-americano de Guantánamo, em Cuba, que se tornou célebre pelos inúmeros casos de tortura e tratamento abusivo cometidos pelas autoridades norte-americanas contra afegãos e iraquianos detidos por suspeita de terrorismo. “Este foi o trabalho mais próximo daquela que era a minha profissão, antes de me dedicar à fotografia, há cerca de dez anos”, conta Cornwall, referindo-se ao período em que representava, na condição de advogada, pessoas que tinham sido condenadas injustamente pelos tribunais dos EUA. Não conseguiu trabalhar junto dos homens que saíram em liberdade de Guantánamo, acabando por trazer apenas o retrato do centro de detenção – o livro foi nomeado um dos dez melhores fotolivros de 2017 pela New York Times Magazine.

Necessary Fictions descreve as aldeias de aspecto afegão e iraquiano que os EUA construíram dentro do seu próprio território para realizar simulacros de guerra e assim treinar as suas tropas. “No interior dessas aldeias de faz-de-conta, viviam cidadãos reais do Afeganistão e do Iraque que tinham fugido da guerra apenas para a recriar e simular ao serviço do exército dos EUA”, descreve a fotógrafa.

Model Citizens é um projecto diferente dos anteriores. Cornwall escolheu olhar para dentro do país, focando-se nos mecanismos de transmissão cultural dirigidos às massas, nas ficções que os sustentam. Mas não só. Cornwall procurou indícios, em seu torno, de algo que é, no fundo, imaterial, que existe apenas no plano psicológico dos cidadãos norte-americanos: a sua identidade cultural. Nas suas imagens, é visível o que dela transborda e que perfaz a realidade do país que tem o maior número de armas por habitante, a maior população prisional do mundo, o maior número de bases militares espalhadas pelo planeta, o que tem a maior despesa militar e um estatuto de grande potência que influencia, não raramente com recurso a força bélica, os destinos de outros estados com a anuência da sua população. Tudo isto sem perder de vista o conservadorismo que tende a agudizar-se com a possível reeleição de Trump, candidato à presidência que apela a sentimentos de patriotismo que facilmente se confundem com os de nacionalismo.

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"A Entrevista". Pessoas presentes no comício “Save America”, em Wilkes-Barre, Pensilvânia, EUA, em 2022, são entrevistadas num parque de estacionamento seis horas antes de Trump subir ao palco. Debi Cornwall

“Considero, enquanto cidadã norte-americana, que estou bem posicionada para estar consciente do que significa sê-lo”, observa Cornwall. “Mas nem sempre isso acontece. É impossível vermos o ar que respiramos. (…) O meu trabalho consiste no meu processo de tomada de consciência sobre a forma como estes mecanismos [de transmissão cultural] funcionam, a influência que têm sobre mim.” Enfatiza que a sua trilogia é, no fundo, sobre “o poder único que os EUA têm no mundo” e tem esperança que o seu livro “ajude pessoas de todo o mundo a reconhecer dinâmicas semelhantes no seu próprio país”.

A exposição do seu trabalho no festival de fotografia Les Rencontres d’Arles, em França, que estará patente até 29 de Setembro, permitiu a Cornwall perceber, em resultado do contacto com visitantes de várias nacionalidades, “que o nacionalismo militarizado, a polarização das populações, os sentimentos anti-imigração e a sensação de que existem encenações, performances, em curso estão a ganhar espaço” um pouco por todo o mundo. “Foi bom perceber o que as pessoas retiravam do projecto. É por isso que desejo que o trabalho seja encarado como um estudo de caso de um fenómeno global.”

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