“O alojamento pode funcionar como um inibidor na mobilização para o ensino superior”

A coordenadora de um inquérito a dez mil estudantes portugueses, Susana da Cruz Martins, explica que os custos da habitação estão a limitar o acesso ao ensino superior.

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Inquérito PÚBLICO: “O alojamento pode funcionar como um inibidor na mobilização para o ensino superior” Lusa
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Em média, os estudantes precisam de 900 euros por mês para estudar no ensino superior. O que esconde este número?
Este número, tratando-se de um valor médio, não permite por si só desvendar as desigualdades de situações entre os estudantes que frequentam o ensino superior, nem o peso das principais componentes dessa despesa. Contudo, indica um valor global importante e que nos dá conta, entre outras coisas, que aumentou muito face à anterior edição do Eurostudent (em que os valores globais médios por mês não chegavam aos 700 euros).

Na edição anterior, com a aplicação do inquérito no final do ano 2020, ainda sob o efeito da pandemia, houve uma grande contracção de despesas, por parte da população em geral, mas sentida particularmente entre os estudantes do ensino superior. Aliás, só as despesas em comunicações (onde se inclui a Internet) aumentaram. Já este inquérito, implementado na Primavera de 2023, expressa uma dinâmica de despesa actualizada à vida estudantil pós-pandémica. Por outro lado, o conjunto das despesas também foi afectado pelo efeito da inflação, que subiu de forma diferenciada nos vários países participantes, mas cujos efeitos na subida do valor total das despesas dos estudantes foram muito evidentes.

Uma outra análise prende-se com a composição das despesas. Um aspecto que fica muito saliente é o peso das despesas com os estudos (em que se inclui, entre outros aspectos, as propinas). Portugal é um dos países participantes no Eurostudent 8 em que este peso é mais relevante no conjunto da despesa realizada, representando mais de 40% das despesas. O modelo de acesso ao ensino superior, e no que respeita à sua definição política para responder aos efeitos da pandemia na entrada para o ensino superior, resultou numa maior taxa de conclusão do ensino secundário e, por conseguinte, um maior contingente de jovens em condições de prosseguir estudos. A avaliação das despesas a ter com a frequência no ensino superior, nomeadamente o que respeita ao alojamento, pode, com certeza, funcionar como um inibidor na mobilização para o acesso ao ensino superior.

O que mudou mais desde a última edição deste projecto?
A edição anterior foi um pouco atípica. A recolha de informação contida na amostra final foi feita em Novembro e Dezembro de 2020. Este inquérito teve condições de implementação muito especiais. Com a deflagração da epidemia provocada pela covid-19, o ensino superior português, à semelhança de outros em todo o mundo, esteve durante vários períodos com as aulas presenciais interrompidas.

Contudo, foi possível captar alguns dos efeitos mais imediatos da pandemia. A análise dos impactos da pandemia nas condições sociais e de estudo dos estudantes do ensino superior permitiu identificar logo as seguintes tendências: redução das despesas dos estudantes; redução dos rendimentos dos estudantes e aumento das desigualdades; redução da proporção de estudantes deslocados; redução da mobilidade internacional.

Estes efeitos identificados ainda em tempos de pandemia foram agora substancialmente atenuados. Contudo, a integração dos estudantes no ensino superior (através de um indicador de sentimento de pertença) enfraqueceu-se já no anterior Eurostudent e agravou-se no presente inquérito. Os dados são muito evidentes a este respeito e devem provocar uma reflexão sobre as suas implicações na continuidade dos estudos por parte de muitos jovens. É necessário um debate e políticas informadas que actuem na melhoria da integração social dos estudantes nas suas instituições de ensino.

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Susana da Cruz Martins, coordenadora do Inquérito às Condições Socioeconómicas e Académicas dos Estudantes do Ensino Superior e investigadora do CIES-IUL DR

Ainda que quase metade dos estudantes viva com os pais, o que pode explicar a redução do número de estudantes nessa situação?
Esta é em geral a proporção observada de estudantes a viver com os pais (registada nos vários momentos de inquirição anteriores). É uma das mais altas dos países europeus que participam nesta rede europeia. Esta foi ainda mais elevada no anterior inquérito. No inquérito de 2020, ficou expresso um ligeiro aumento dos estudantes a viver com os pais e esteve relacionado com dois tipos de circunstâncias, ambas devido aos efeitos directos da pandemia: os períodos de confinamento e o ensino à distância terem retraído formas de alojamento deslocadas da residência da família de origem; e a diminuição, nesse período, de rendimentos dos estudantes e das suas famílias, reduzindo-se as possibilidades de terem formas alternativas de alojamento. Assim, o ligeiro aumento de estudantes que não vivem com os pais, agora registado, repõe o padrão de estudantes deslocados.

Os estudantes dependem da família enquanto principal fonte de rendimento. Ir para a universidade ainda está dependente do contexto de origem?
Para o conjunto dos estudantes, a família é a principal fonte de rendimentos — em média, esta componente dos rendimentos significa mais de 70% dos rendimentos e apoios dos estudantes. A importância desta fonte tem sido muito assinalada nas edições anteriores do Eurostudent para os estudantes portugueses e, sobretudo, comparando com o contexto europeu. O peso dos rendimentos provenientes do trabalho remunerado (15%) e dos apoios públicos do Estado (8%) é muito distante, em termos de relevância, dos que têm origem na família. Tais valores dão conta que na decisão de ir estudar para o ensino superior as condições de apoio das famílias, económicas e sociais, são essenciais.

Os filhos de pais qualificados são beneficiados duplamente para a sua decisão de ir e para a sua sustentabilidade no ensino superior: em geral, os pais mais qualificados possuem mais condições de apoio aos estudantes e, por outro, proporcionam um contexto de maior valorização de percursos longos de escolarização.

O ensino superior ainda está a ter o seu papel de elevador social?
Este elevador social, uma designação simples para dar conta de processos de mobilidade ascendente, tem vindo a complexificar-se. As qualificações de ensino superior são realizadas em diferentes instituições e dizem respeito a áreas e graus diferenciados e actuam em conjunturas também diferenciadas. Contudo, o elevador continua a funcionar. Embora estes dados não permitam tirar conclusões muito directas a este respeito, outras fontes (nomeadamente as do Inquérito ao Emprego do INE) têm dado conta, em termos gerais, que os indivíduos mais qualificados estão mais protegidos em relação ao desemprego, têm inserções profissionais mais qualificadas e são mais bem remunerados. Esta é uma ideia que deve ser reafirmada, porque para além de ser facilmente sustentada, tem implicações na vida de muitos jovens que tomam decisões a este nível, mas também em termos do desenvolvimento do país no seu todo.

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