Clima já está a influenciar decisões de três quartos dos viajantes europeus

Fuga dos turistas às ondas de calor ainda não se faz sentir, mas já está entre preocupações de quem viaja. Turismo em Portugal avança nas práticas sustentáveis, mas adaptação ao longo prazo é ténue.

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No Algarve, os empreendimentos junto ao mar estão ameaçados pelo recuo da linha da costa Matilde Fieschi
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A ameaça das alterações climáticas paira sobre o bem-estar no país — e o turismo não escapa a essa sombra. Além de reduzir o seu impacto negativo em termos ecológicos, é preciso garantir que o sector tenha condições para fornecer os seus serviços num território com um clima cada vez mais quente, exposto a fenómenos extremos, como secas e incêndios florestais, e vulnerável à erosão costeira, que ameaça as nossas praias.

Já existe um investimento em práticas sustentáveis para mitigar os impactos do turismo – mas estará o país já a adaptar-se às mudanças estruturais decorrentes das alterações climáticas? E os turistas, como mudam o seu comportamento em resposta a estas mudanças?

Em Portugal, apesar dos desafios levantados pela sazonalidade e a centralização, algo ainda é dado como certo: “O turismo continua a crescer com toda a pujança” e, a nível global, “todas as projecções apontam para um crescimento substancial à medida que mais pessoas vão acedendo à classe média”, nota Cristina Siza Vieira, vice-presidente executiva da Associação de Hotelaria de Portugal (AHP).

E já se pensa em ajustar os planos perante o impacto incontornável das alterações climáticas? “Será aquilo que o mercado for ditando”, nota. “Também não se pensava em cultivar uva e fazer vinho no Reino Unido e neste momento já se faz. Há oportunidades que vão surgir.” Ou seja, o futuro depois se verá — e o que irá ditar as oportunidades agarradas pelo sector serão, como já têm sido, as "tendências de mercado".

O que preocupa quem viaja?

Um dos documentos que nos últimos tempos chamou a atenção do sector foi o relatório “Monitorização do sentimento em relação às viagens intra-europeias Verão/Outono 2024”, publicado em Junho deste ano, no qual a European Travel Commission (ETC) resolveu incluir uma nova questão: “Como é que a alteração do clima (chuvas fortes, ondas de calor, falta de neve, etc.) tem influenciado os hábitos de viagem?”

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Para Cristina Siza Vieira, os dados deixam uma mensagem clara: 76% dos inquiridos já afirmam estar a ajustar os seus hábitos de viagem em função das alterações climáticas. Entre estes, 17% já evitam destinos com temperaturas extremas, uma proporção que sobe para 32% entre as pessoas com mais de 55 anos, que “estão particularmente determinados a evitar o calor”, menciona o relatório. “Há aqui uma mudança da procura, temos de perceber que isto está a mexer”, alerta a jurista.

Estas mudanças já se fazem sentir em Portugal, com a eventual fuga de turistas da bacia do Mediterrâneo para os novos climas mais temperados? “Não é isso que se tem observado”, responde Siza Vieira. A Europa continua a ser o principal destino mundial e o Sul do continente não perdeu o seu papel essencial nessa distinção.

No topo das preocupações dos que viajam dentro da Europa, aliás, os fenómenos meteorológicos extremos surgem em quinto lugar, com 10,1% dos viajantes a referi-lo. No topo está antes o aumento dos custos relacionados com a inflação (20,8%), que gera sentimentos de insegurança, e a instabilidade económica e finanças pessoais (16,1%).

Já a pegada ecológica da viagem surge apenas em nono lugar, mencionada por 5,2% dos viajantes, o que explicará que o transporte aéreo, que tem “uma fatia de leão em termos de emissões de CO2 dentro do turismo”, não seja ainda encarado com um obstáculo. Mas nem por isso o sector está parado nesta matéria, nota Cristina Siza Vieira, que enumera o investimento em investigação sobre combustíveis sustentáveis, em mobilidade suave tanto nas cidades como fora e a procura de alternativas de transporte.

Fugir ao calor?

Já no ano passado o relatório “Impacto regional das alterações climáticas na procura turística europeia”, publicado pelo Centro Comum de Investigação (Joint Research Center, JRC) da Comissão Europeia, alertava que os países do Sul da Europa e regiões insulares — altamente vulneráveis aos impactos das alterações climáticas — irão enfrentar reduções da procura turística em todos os cenários de aquecimento global, com quedas que podem ser consideráveis em Chipre, Grécia, Espanha e também Portugal.

Uma das consequências é uma eventual deslocação das duas épocas intermédias, que passarão a ocorrer mais cedo na Primavera e mais tarde no Outono, respectivamente, à medida que se tornam cada vez piores as condições para o turismo durante o Verão nas regiões do Sul da Europa.

A vice-presidente executiva da AHP acrescenta ainda que as adaptações podem surgir através da relocalização de algumas apostas, da oferta de outras actividades de ar livre que possam ser praticadas fora das alturas de maior calor, da abertura e encerramento das actividades em períodos diferentes, com eventual impacto na época alta — que, como já prevêem os estudos, poderá passar para as temporadas intermédias (a chamada shoulder season).

Mas…

O estudo, contudo, atribui um grande peso à preferência dos turistas pelo conforto térmico, que pode diluir-se entre outras preferências ou factores como o aumento da consciencialização sobre o impacto das alterações climáticas e sensibilização para questões de sustentabilidade.

António Lopes, professor no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa, recorda os antigos estudos do projecto Peseta, também a cargo do JRC da Comissão Europeia, que há mais de 15 anos começaram a trazer projecções de longo prazo e a mostrar que “muito possivelmente haveria modificações nos destinos turísticos”.

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Já então as previsões indicavam que até meio do século os fluxos deixariam de ser tão intensos para o Sul da Europa, com o surgimento de zonas muito parecidas com o Norte de África em alguns países. Ora, como nota o investigador no Zephyrus —​ Grupo de Investigação em Alterações Climáticas e Sistemas Ambientais, não são as altas temperaturas que têm impedido as pessoas de viajar para o continente africano (quanto muito, a instabilidade política e precariedade de infra-estruturas).

E, mais uma vez, não é claro o impacto directo destas questões nas decisões dos viajantes. Em Julho deste ano, o relatório da ETC sobre tendências e perspectivas do turismo europeu no segundo trimestre do ano concluía que, “até à data, não há provas sólidas de que os acontecimentos do ano passado [incêndios florestais] estejam a afectar as viagens à Grécia este ano”.

Também este relatório nota a tendência para uma dispersão das viagens ao longo das temporadas intermédias (a shoulder season) nos países do Sul da Europa, “reduzindo a dependência do país em relação aos turistas durante os meses de temperatura máxima, nos quais é mais provável que ocorram tais fenómenos meteorológicos e climáticos”.

O que nos espera?

Quais são os desafios que estas mudanças terão, concretamente, a nível nacional? O Roteiro Nacional para a Adaptação 2100 (RNA2100), que avaliou a vulnerabilidade do território às alterações climáticas no século XXI, identifica quatro efeitos das alterações climáticas que terão um impacto particular sobre o turismo.

Está em causa um aumento das temperaturas e maior frequência e intensidade das ondas de calor; os períodos de seca que poderão afectar estruturas e serviços, desde campos de golfe e piscinas até sistemas de irrigação de parques e jardins; incêndios florestais, com forte impacto no turismo de natureza; e ainda a erosão costeira e inundações potenciadas pela subida do nível do mar, que ameaçam a segurança das pessoas e colocam riscos para as próprias infra-estruturas.

No dia-a-dia das populações —​ e, naturalmente, dos turistas —​ têm surgido também questões de saúde pública que podem complicar as perspectivas do país como destino para todos os gostos. O aumento das temperaturas, recorda António Lopes, traz condições propícias para a migração gradual de vectores de doenças características de outras latitudes, como o vírus do Nilo, o Zika ou mesmo a dengue (que já é endémico na Madeira, onde também é conhecido como vírus de Santa Luzia).

As ondas de calor mais longas e intensas também estão associadas a aumentos na taxa de mortalidade, que poderá ser particularmente sentida num país envelhecido como Portugal, com 2,5 milhões de pessoas com 65 anos ou mais. Também os turistas idosos não escapam às ondas de calor —​ e podem começar a evitar as viagens a países onde não consigam encontrar algum conforto térmico (como, aliás, já começa a acontecer).

As consequências destes fenómenos climáticos poderão ter impactos no património natural e cultural, “incluindo os hotspots de biodiversidade, as cidades históricas, monumentos e sítios arqueológicos”, enumera o RNA2100. “O aumento previsto das temperaturas, as alterações nos extremos de temperatura e nos padrões de precipitação e os fenómenos meteorológicos extremos podem acelerar a degradação dos ecossistemas e do património cultural, diminuindo a sua atractividade para os turistas e comprometendo a sua preservação a longo prazo.”

Portugal, que planos?

No Plano Nacional de Energia e Clima para 2030 (PNEC2030), o turismo é identificado como um sector de “especial efeito multiplicador”, pela sua “influência directa no consumidor e nas cadeias de fornecimento”, em matéria de gestão e consumo sustentável e na dinamização de “comportamentos de baixo carbono”.

Para a vice-presidente executiva da Associação de Hotelaria de Portugal, Cristina Siza Vieira, “a hotelaria está a fazer o que pode relativamente à sua pegada”. “Estamos no caminho não apenas da mitigação, mas da compensação do impacto”, entre iniciativas de economia circular (por exemplo, reaproveitamento de têxteis) ou protocolos de plantação de árvores, além de uma tentativa de ligação à comunidade residente. No interior, em particular, o turismo tem um “efeito potenciador muito maior”, podendo contribuir para a coesão territorial.

No relatório da OCDE sobre tendências e políticas de turismo em 2024, aliás, Portugal tem direito a um pequeno destaque a propósito dos objectivos estratégicos para o desenvolvimento sustentável do sector plasmados na Estratégia para o Turismo 2027, sob o lema “O turismo como pólo de desenvolvimento económico, social e ambiental em todo o território”.

Entre as oito metas no âmbito dos três pilares da sustentabilidade (social, ambiental e económico), três são de âmbito ambiental: conseguir que mais de 90% das empresas adoptem medidas de eficiência energética, promovam uma utilização eficiente da água nas suas operações e desenvolvam acções eficientes de gestão de resíduos.

Contudo, sob um olhar mais atento, é possível perceber nuances. Entre os cinco principais desafios para o turismo em Portugal nos próximos dez anos identificados no processo participativo que deu corpo à Estratégia para o Turismo 2027, as alterações climáticas não estavam entre as preocupações de longo prazo: os participantes nos grupos de discussão e contributos apontaram como prioridades o combate à sazonalidade, a valorização do património e cultura, a desconcentração da procura, a qualificação e valorização dos recursos humanos e o estímulo à inovação e ao empreendedorismo.

O que já se sabe sobre as soluções?

Afinal, estamos preparados para receber turistas em temperaturas que podem tornar-se muito elevadas? Para acomodar não apenas os turistas mas também os seus habitantes, as cidades terão de investir em abrigos de calor e fontes de água, promover meios de transporte acessíveis e com baixas emissões, criar espaços verdes. “Temos de adaptar as cidades, que convocam cada vez mais gente”, resume Cristina Siza Vieira, dando o exemplo das possibilidades urbanísticas estudadas em Espanha, como um regresso às carismáticas “ruas medievais, mas estreitas e com mais sombra”.

Outro contributo do turismo pode vir através do edificado: no plano director municipal de Cascais, por exemplo, foi incluída a indicação de não utilizar cores muito escuras nos edifícios, que faz com que estes retenham mais calor. O business as usual, contudo, sobrepõe-se às novas regras: “Andamos muito preocupados, mas depois na prática os edifícios aparecem com condições que não devíamos fazer no Sul da Europa, continuam a fazer aqueles hotéis de cores escuras”, lamenta António Lopes, do IGOT, que fez parte da equipa técnica na revisão do documento. Em conclusão, afirma, “em Portugal ainda estamos a gastar como se não estivesse a acontecer nada”.

É aí que o poder político pode ajudar a acelerar o passo. António Lopes, que tem apoiado autarquias na elaboração dos seus planos de adaptação climática, dá o exemplo do Algarve, onde vários autarcas “já perceberam que é preciso fazer alguma coisa rapidamente, em particular nos concelhos mais ribeirinhos — os que vão ter problemas”.

Reporte de sustentabilidade

No relatório sobre tendências e políticas de turismo em 2024, a OCDE nota ainda que, “embora a sustentabilidade esteja cada vez mais integrada” nas estratégias de turismo em muitos países, os objectivos de desempenho “ainda se centram tipicamente em medidas económicas”. É necessário ir mais longe, sublinha o relatório, “olhando para além dos objectivos históricos de chegadas e despesas turísticas e centrando-se nas necessidades específicas do país ou destino”.

Ligando a actividade turística ao planeamento do território, em particular o planeamento urbano, António Lopes, do IGOT, nota um pensamento “mais reactivo do que proactivo” em matéria de adaptação. O investigador tem notado o interesse de alguns operadores que começam a perceber que é preciso começar a agir antes que a situação climática se agrave — “mas o interesse desvanece enquanto não começar a pesar no fluxo de caixa das empresas”. “Só vamos resolver o problema quando os economistas se meterem nisso”, brinca.

Essa mudança acabará por vir, em parte, através das obrigações de reporte em matéria de sustentabilidade. Cristina Siza Vieira explica que há uma “previsão de que esta vai ser uma exigência dos mercados, quer da banca e seguros, quer de operadores que procuram certificação, quer dos turistas mais sensíveis a estes temas”.

E há ainda outros compromissos que podem fazer a diferença. Em 2022, na sequência da COP27 no Reino Unido, centenas de organizações aderiram à Declaração de Glasgow sobre a acção climática no turismo, que pretende ser um “catalisador” que garanta “compromissos fortes” para apoiar os objectivos globais de reduzir para metade as emissões durante a próxima década. Entre os actuais signatários portugueses estão a Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo (APAVT), a Agência para o Desenvolvimento do Turismo de Natureza ou a Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra.

Também o Turismo de Portugal é um dos signatários, assumindo compromissos como ter 75% das empresas a adoptar medidas de eficiência energética e sistemas de gestão de água e de resíduos até 2023, ter 75% das acomodações turísticas sem plásticos de utilização única ou formar 50 mil profissionais nas áreas da sustentabilidade. Na página da Declaração de Glasgow, contudo, é possível ver os documentos com os compromissos... mas não o relatório do cumprimento dos mesmos.