As dores e as delícias de ser microempreendedora imigrante em Portugal

Mariana, Cláudia e Laiana superam dificuldades e, como estrangeiras, montam negócios e querem ampliar operações, seja pulando da internet para lojas físicas, seja fincando raízes em outro país.

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Jovem baiana, neta de ex-escravos, criou a Ancestralizando, empresa que produz roupas e faz comidas tendo a religião africana como inspiração Vicente Nunes
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Empreender não é fácil em nenhum lugar do mundo e se torna ainda mais desafiador quando o país escolhido não é o de origem. “Nesses casos, as dificuldades são redobradas”, diz a baiana Mariana Oliveira, 35 anos, que vive há quase oito anos em Portugal. Foi preciso percorrer uma ampla jornada para que, enfim, reunisse as condições necessárias para tornar realidade o sonho de ser dona do próprio negócio, a Ancestralizando, que agrega uma loja virtual de roupas e acessórios e um bufê cujo cardápio é todo baseado na culinária do estado em que nasceu, especialmente acarajé e bobó de camarão.

“Não foi fácil chegar até aqui. Venho de uma família muito humilde, cresci no interior da Bahia, na roça, com avós filhos de escravos”, relata Mariana. No Brasil, a jovem não via muito futuro profissional — tinha uma distribuidora de bebidas e cursava administração, curso que não concluiu — e se sentia altamente insegura em meio à violência que, por ano, mata 46 mil pessoas no país, boa parte, na Bahia. Assim que pisou em Portugal, empregou-se como vendedora e, depois, como gerente de lojas de grifes. Também trabalhou no comércio de produtos para a construção civil, sempre alimentando o desejo de, um dia, ter uma empresa para chamar de sua. “Neste ano, finalmente consegui criar a Ancestralizando”, afirma.

Na loja virtual, todos os produtos carregam a cultura afro-brasileira, com imagens que remetem aos orixás do candomblé, religião muito presente entre os baianos. Na Bahia, cerca de 80% da população se declara negra. “O nosso objetivo, tanto com as roupas, quanto com os acessórios, é recuperar a nossa ancestralidade, a nossa afetividade”, diz. As roupas, os acessórios e as delícias da culinária são ofertadas, também, em feiras e festivais em que a negritude é a estrela. “É incrível como os imigrantes se sentem acolhidos quando se deparam com a comida que preparamos, com as roupas e os acessórios que criamos”, assinala.

Mariana já faz planos. “A ideia é abrir uma loja física nos próximos meses. Quero ajudar a difundir a cultura negra pela moda, pela comida, a nossa fé”, ressalta. A microempreendedora acredita que seu primeiro negócio será um sucesso e não economiza na confiança. “Sempre fui muito bem acolhida em Portugal, que me deu oportunidades. Esse é um ponto importante para que tudo saia como o planejado”, comenta.

Sonhos realizados

A pernambucana Cláudia Menezes, 58 anos, é só sorrisos. Por mais dificuldades que tenha enfrentado em Portugal até conseguir abrir a própria empresa, diz que realizou um sonho duplo. O primeiro, de morar no país europeu. “Desde que eu me entendo por gente, esse sempre foi o meu desejo”, conta ela, que nasceu em Petrolina, região do semiárido brasileiro produtora de uvas e vinhos. O segundo, ter o próprio negócio na terra que escolheu para viver. “Sou dona da Cacau Caffé, que comercializa doces artesanais pela internet”, diz.

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Cláudia é dona da Cacau Caffé, que fabrica doces para festas. Ela investiu mais de 10 mil euros (R$ 60 mil) no negócio Jair Rattner

Cláudia sempre teve nas veias o sangue empreendedor. No Brasil, trabalhava com moda de praia. “Fabricava tudo e vendia no país e exportava”, conta. Foi nesse período que teve a oportunidade de conhecer Portugal, além de Espanha e Itália. Contudo, foram anos de espera para que ela pudesse atravessar, definitivamente, o Atlântico, o que ocorreu há oito anos. “Meus filhos cresceram e ficaram independentes. Então, pensei: agora que estou livre, posso fazer o que eu amo. Fechei a fábrica no Brasil e me mudei para Portugal”, relembra.

Na preparação para a mudança de vida, a pernambucana fez cursos de culinária, especializando-se na fabricação de doces. Todo o caminho estava sendo pavimentado para que a nova etapa se desenrolasse sem grandes atropelos. Mas, como tudo na vida, surpresas boas e ruins acontecem. “Quando cheguei em Portugal, não me deram o NIF, registro na Autoridade Tributária (correspondente ao CPF no Brasil). A alegação foi a de que já tinham esgotado todos os números de contribuintes para estrangeiros daquele ano”, detalha.

Foram seis meses de espera e, sem sucesso, Cláudia retornou para o Brasil. “Não queria ficar ilegal no país em que sonhava morar. Eu nunca iria para um lugar onde ficasse ilegal”, ressalta. “Depois, exigiram que um português assinasse pela empresa, mas eu não aceitei que outra pessoa fizesse por mim”, acrescenta. Até que a legalização da Cacau Caffé se efetivasse, passaram-se seis anos, com oito viagens entre Brasil e Portugal.

“Essas viagens fizeram com que eu ficasse sem dinheiro. Isso atrasou o meu negócio, mas não impediu que eu tivesse a minha empresa”, enfatiza a microempreendedora. Ela não sabe dizer ao certo quanto gastou para colocar seu negócio de pé. “Mas foram mais de 10 mil euros (R$ 57 mil)”, estima. A Cacau Caffé funciona a partir da casa dela, onde faz palhas italianas, bem-casados, bolos e flores de açúcar. “São cerca de 100 encomendas por mês”, afirma. O próximo passo será abrir um café. “Quero ter uma loja, para poder oferecer os meus docinhos”, frisa.

Presença em Londres

A ampla cozinha da casa da paranaense Laiana Bertolazi, 37 anos, funciona a todo vapor. O trabalho intenso tem como objetivo atender pedidos para 10 mil coxinhas por mês. “É uma demanda crescente”, diz ela, que trocou Londrina, onde nasceu, por Portugal há 10 anos. A dona da Coxinhas da Lai trouxe na bagagem a experiência de atuação no setor de restaurantes. Foi gerente de churrascaria durante 12 anos.

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Laiana Bertolazi é dona das Coxinhas da Lai. Ela recebe encomendas de mais de 10 mil salgados por mês Jair Rattner

A microempreendedora lembra que seu negócio só se tornou realidade depois que conseguiu ter acesso ao CAE, Código de Atividade Econômica, autorização emitida pelo Departamento de Finanças de Portugal, que permite a venda de produtos em feiras e eventos. “Sem essa licença, não há como participar de eventos públicos”, explica. “Constantemente, vejo a fiscalização atuando, mas não foi difícil tirar o documento”, ressalta.

Antes de embarcar no ramo das coxinhas, salgados que são uma paixão brasileira e que já conquistaram o mundo, a paranaense tinha um café e um restaurante. Exausta, decidiu fechá-los. “Fiz isso há um ano. Eu chegava a trabalhar 17 horas por dia. Com dois filhos, um de 15 anos, outro de 6, vi que precisava ficar mais com eles”, relata. Agora, Laiana comercializa seus produtos em feiras e eventos e tem contrato com uma rede de restaurantes. “Apenas para os restaurantes, entrego 1.200 coxinhas por semana”, vibra.

Com a vida menos estressante, a brasileira consegue trabalhar de casa e dar toda a atenção que os filhos necessitam. “Gosto muito do que faço, e tenho planos de expandir minha marca para outros países. Atualmente, chego a produzir 10 mil coxinhas em um único mês, e o meu foco agora é iniciar uma produção em Londres”, revela. Além das coxinhas de frango, Laiana faz coxinhas com carne de costela. A boa mão na cozinha se soma a um ingrediente especial para ser uma empreendedora de sucesso: simpatia para atender as pessoas.

Os artigos escritos pela equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil

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