A história da penicilina é mais do que conhecida: Alexander Fleming voltou de férias em 1928 e encontrou bolor a desenvolver-se numa placa de Petri com bactérias Staphylococcus. O cientista achou curioso o facto de as bolinhas verdes impedirem, ao que tudo indicava, o crescimento das colónias bacterianas. E foi assim que percebeu que os fungos filamentosos, como estratégia de autodefesa, produziam uma substância química com propriedades antibióticas.

Quase todos sabemos de cor os bastidores da descoberta da penicilina não apenas porque a substância teve um grande impacto no tratamento de infecções bacterianas, mas também porque a história apresenta o lado humano da ciência: há um investigador que volta ao laboratório e não encontra as coisas limpinhas como havia deixado. E é precisamente essa perturbação da ordem natural das coisas que o faz formular uma hipótese, testá-la e chegar a um resultado. Gostamos desta narrativa científica porque ela nos foi dada a conhecer num formato que inclui uma personagem, um mistério por resolver e uma solução.

O projecto Diário de um Cientista explora justamente esta possibilidade de os cientistas, enquanto narradores dos seus próprios projectos, partilharem com os leitores do PÚBLICO a origem das ideias científicas, o trajecto percorrido até elas ganharem corpo e as observações feitas no terreno. Desde o início de Agosto, todos os dias, um investigador conta uma história sobre o projecto que desenvolve. Todos textos têm uma coisa em comum: os narradores são também personagens.

O Diário de um Cientista é um projecto de comunicação de ciência, promovido pelo Azul em parceria com a Associação Biopolis, que aproximou cientistas e jornalistas durante várias semanas, quer em encontros presenciais e workshops, quer em reuniões à distância e em grupos no Whatsapp. Esta troca de experiências culminou na produção de 26 textos – parte deles já publicados – sobre diferentes seres vivos e patrimónios que "convivem" num ecossistema imaginário desenhado pelo ilustrador André Carrilho.

As primeiras populações a aterrar no mundo exuberante criado por André Carrilho foram os Singnatídeos. "Mas que diabo é um signatídeo?", pergunta retoricamente o autor do texto, o cientista Nuno Monteiro. Trata-se de uma família a que pertencem os cavalos-marinhos, e que se destaca por apresentar indivíduos machos a carregar os ovos durante a incubação. Convém ler os textos da série com bastante atenção porque no final há um quiz para quem quiser colocar a memória à prova.

Aos cavalos-marinhos seguiram-se, na sequência de artigos da série Diário de um Cientista, os anfíbios da bióloga Marisa Naia, os predadores carnívoros do ecólogo Gonçalo Curveira-Santos, os musgos da bióloga Helena Hespanhol, os gatos-bravos da médica veterinária Beatriz Alves, os parasitas de baleia de Joaquim Filipe Faria, a redescoberta de uma língua perdida pelo investigador Jorge Rocha, as lagartixas da investigadora Raquel Ribeiro, os gaios do agrónomo João Rosa, os lobos ibéricos da bióloga Diana Lobo, o deserto do investigador José Carlos Brito, a pescaria genética que o cientista Manuel Lopes Lima empreendeu num rio em Guiné-Bissau e, esta quinta-feira, a evolução: a bordo de uma máquina do tempo com coelhos, Darwin e Pokémons, contada por Eugénio Silva. Como vêem, ainda vamos a meio do percurso e já não falta biodiversidade nesse ramalhete improvável de histórias científicas. Até ao fim de Agosto haverá muitas outras narrativas com ciência dentro, todas elas contadas na primeira pessoa.

Além dos textos, o projecto Diário de um Cientista conta ainda com uma série de podcasts produzida por Aline Flor e Joel Alves. Os episódios encapsulam histórias contadas pelos próprios cientistas sobre o lado pessoal da ciência que fazem, incluindo fracassos e frustrações, e até confissões que vão desde as hormonas da adolescência activadas pelo filme A Mulher de Vermelho à compaixão despertada pelo olhar de um animal enjaulado.

Há ainda um episódio no qual José Carlos Brito, investigador do Biopolis-Cibio na área da biodiversidade dos desertos e regiões áridas, relata como correu desesperado, em plena madrugada, em direcção a um grupo de vacas para evitar que estragassem as armadilhas para capturar (temporariamente) crocodilos em lagoas na Mauritânia. O esforço foi vão: as vacas entraram na água e o cientista não conseguiu, pelo menos naquela oportunidade, recolher as amostras genéticas que pretendia. São estes relatos de bastidores, compostos por decepções, imprevistos e casos de sucesso, que ajudam a compor um retrato mais interessante e humano da prática científica – a exemplo do bolor que cresceu durante as férias numa placa de Petri. 

 

Créditos das imagens:

1) Amostra de bolor Penicillium apresentada por Alexander Fleming a Douglas Macleod em 1935 (Christie's South Kensington Limited) ​

2) O investigador José Carlos Brito capturou temporariamente crocodilos para recolher amostras de tecido para as análises genéticas, com o objectivo de perceber a estrutura geográfica das populações e a ocorrência de fluxo génico entre lagoas (Fernando Martínez-Freiría)​