Escavações em Lagos revelam manilha para comprar escravos e enterro invulgar

Esta é a primeira descoberta de uma peça usada especificamente como moeda para comprar pessoas, o que “confirma que o comércio esclavagista aconteceu” em Lagos, sublinhou a arqueóloga Elena Morán.

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A primeira grande venda de escravos em Lagos, na qual foram vendidas 235 pessoas, é agora atestada pela recente descoberta Daniel Rocha
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Escavações no centro de Lagos revelaram uma manilha, argola em latão usada para comprar pessoas, e uma fossa com cinco esqueletos, um deles com sinais de violência, disse a directora do Museu de Lagos. A ligação de Lagos ao comércio de escravos já era conhecida, mas esta é a primeira descoberta de uma peça usada especificamente como moeda para comprar pessoas, o que "confirma que o comércio esclavagista aconteceu aqui", sublinhou Elena Morán.

"Muitas destas peças eram produzidas nos actuais Países Baixos e encomendadas pelos portugueses, e esta manilha, datada do século XVI, coincide com a altura em que se inicia o comércio de escravos", referiu a arqueóloga, acrescentando que a manilha foi descoberta em 2023 em escavações junto à porta da vila.

Segundo Elena Morán, Gomes Eanes de Zurara, cronista do Infante D. Henrique, já fazia referência na Crónica de Guiné àquela que terá sido a primeira grande venda de escravos em Lagos, na qual foram vendidas 235 pessoas, junto à porta da vila, versão agora atestada pela recente descoberta.

Na mesma zona, paredes meias com a porta da vila, os arqueólogos fizeram outra descoberta: uma fossa com cinco enterros, sendo que um dos esqueletos apresentava sinais de violência, num episódio que remonta ao século XVI.

Sem poder ainda avançar com detalhes sobre estes enterramentos, que estão em estudo pelo Município de Lagos e pela Universidade de Coimbra, Elena Morán diz apenas que é uma situação "invulgar" no espaço urbano.

Segundo a responsável, nesta época, o núcleo urbano encontrava-se organizado com igrejas paroquiais e cemitérios associados, não sendo habitual haver enterros fora desses espaços, a não ser que fossem pessoas com doenças contagiosas, anomalias ou escravos.

"Escavámos cerca de 50 fossas naquele perímetro, alguns eram poços para água, outros para depositar detritos ou com funções de reservatórios. [A descoberta dos enterramentos] foi completamente inesperada", disse.

Em 2009, durante as escavações para a construção de um parque de estacionamento, foi identificada fora das muralhas de Lagos uma enorme lixeira onde foram encontrados 158 esqueletos, que depois de exumados se veio a confirmar serem de origem africana.

Os esqueletos foram na sua maioria simplesmente atirados para o local, uma grande lixeira urbana, no Vale da Gafaria, embora alguns tenham sido ali colocados de forma mais cuidadosa, referiu Elena Morán.

"Todo aquele acervo dá para milhares de estudos e o que está a ser estudado em continuidade são os estudos antropológicos. Os estudos integram bases de dados a nível mundial que estão a permitir aferir a procedência daquelas pessoas", sublinhou.

Em preparação está o regulamento de um concurso de ideias para erguer um memorial às pessoas escravizadas, uma forma de as homenagear e de chamar a atenção para um problema que ainda existe no mundo actual.

"A escravatura não é uma coisa do passado, o facto de podermos falar destes temas ajuda a criar consciência, a estar mais alerta, identificar os sinais e eventualmente poder denunciar", defendeu Elena Morán.

A peça de arte pública será colocada na Gafaria, ao abrigo de um projecto que ainda está a ser desenvolvido em colaboração com a Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação (IADE) da Universidade Europeia.