Quase 25% da paisagem da Europa pode ser renaturalizada. 100.000 hectares no Algarve

Quase 117 milhões de hectares da Europa poderiam ser renaturalizados, ou seja, voltar ao estado selvagem, diz estudo. Restauro das serras algarvias ajudaria Portugal a cumprir meta europeia até 2030.

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A serra do Caldeirão, no Algarve, integra o extenso território proposto no artigo da Current Biology como passível de renaturalização Nuno Ferreira Santos
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Quase 25% da Europa tem potencial para ser renaturalizado e, em Portugal, parte desse território corresponderia a mais de 100.000 hectares de serras algarvias, conclui um artigo publicado esta quarta-feira na revista científica Current Biology.

Elaborado pelos investigadores portugueses Miguel Bastos Araújo e Diogo Alagador, o estudo revela quais são as áreas no continente adequadas para a renaturalização – ou rewilding, em inglês – e oferece um roteiro possível para ajudar os diferentes países europeus a cumprir a Estratégia Europeia para a Biodiversidade de 2030, que visa proteger 30% dos ecossistemas terrestres nos próximos seis anos (sendo que 10% dessas áreas devem estar sob um regime rigoroso de conservação).

O estudo mostra que quase 117 milhões de hectares da Europa – o que equivale a quase um quarto do continente – oferecem múltiplas oportunidades de restauro ecológico. No artigo, os critérios necessários para a renaturalização exigiam uma extensão territorial considerável (o mínimo são 10.000 hectares), a presença de espécies vitais para o ecossistema (herbívoros e carnívoros) e um impacto humano quase residual. Em Portugal, apenas as serras algarvias correspondiam aos parâmetros definidos pelos autores.

“Só encontrámos territórios com mais de 100.000 hectares contíguos e baixo impacto nas serras algarvias. Também avaliámos até que ponto havia ali a presença de grandes carnívoros (com mais de 20 quilos) e de grandes herbívoros (mais de quatro quilos)”, explica ao PÚBLICO Miguel Araújo, professor catedrático de Biodiversidade na Universidade de Évora, que refere ainda oportunidades transfronteiriças se a cordilheira algarvia, numa lógica de grande corredor selvagem, se ligar com as terras andaluzas e estremenhas.

Há mais oportunidades ibéricas por explorar. “Se olharmos para os mapas, detectamos um grande eixo ibérico com potencial de renaturalização. Há na zona da raia, digamos, do centro do país para cima, conectando com a região da Cantábria e das Astúrias, passando por Castela, Leão e Salamanca, um grande corredor de vida selvagem. Existem ursos, existem lobos, existem vários tipos de herbívoros, portanto faria todo o sentido haver um projecto transfronteiriço”, diz Miguel Araújo. O cientista refere que da parte de Espanha “existe até esse interesse” e que é algo que já está no radar do Ministério do Ambiente do Governo espanhol.

Os autores classificaram o território considerando o impacto humano numa escala de zero a 100. “Imaginemos que 100 seria o centro de Londres e zero seria a Antárctida. Nós consideramos apenas zonas de zero a cinco, ou seja, com impacto humano mesmo muito baixo”, refere o cientista numa videochamada.

Cerca de 70% das oportunidades de renaturalização na Europa estão nas porções mais frias do continente, como na Escandinávia, a Escócia e os Estados Bálticos. Nem todos os países têm o mesmo potencial de renaturalização em larga escala, alertam os autores. A aposta portuguesa, por exemplo, volta-se mais para as serras algarvias, dada a dimensão limitada do território nacional. Bélgica ou os Países Baixos terão de apostar em outras estratégias de conservação, como a criação de microrreservas ou a reconversão de solos agrícolas produtivos.

O restauro activo e passivo

A renaturalização consiste na conversão de terras agrícolas ociosas e paisagens degradadas, que se podem tornar novamente selvagens através de técnicas de restauro. Estas acções podem ter mais ou menos intervenção humana, consoante a área disponível e a fauna existente no território. É por isso, aliás, que os autores fazem uma distinção clara entre a renaturalização activa e passiva.

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“Este conceito de rewilding activo e passivo é novo – e não é inocente. O conceito original está associado a promovermos a gestão natural dos ecossistemas, em contraponto a uma gestão humanizada. Nós enfatizamos os processos naturais no conceito de rewilding, deixando que o sistema se organize a si próprio, como acontecia antes de sermos os grandes gestores e jardineiros do território. É muito importante enfatizar isto porque hoje, na forma como o rewilding tem sido comunicada, dá-se uma importância desmesurada à questão da introdução (ou reintrodução) de animais”, explica ao PÚBLICO Miguel Bastos.

O cientista considera as duas formas de restauro – o activo e o passivo – válidas, mas considera importante comunicar que nem todas as acções de renaturalização implicam a introdução de animais. O estudo publicado na Current Biology, aliás, cartografa a presença de carnívoros e herbívoros nos territórios europeus adequados ao restauro. Todos os mapas têm como objectivo apoiar tomadas de decisão na área da conservação tendo em vista o Quadro Global da Biodiversidade Pós-2020.

A literatura científica existente sugere que a renaturalização tende a ser mais auspiciosa em áreas onde há uma população saudável de determinados herbívoros (veados e coelhos, por exemplo) e carnívoros (lobos, ursos e linces). Daí que soluções diferentes possam ser aplicadas consoante a característica de cada território, devendo ser considerados aspectos como as espécies existentes, a saúde das populações, a proximidade das comunidades locais e a extensão do território.

Em Portugal, as acções de restauro activo têm sido desenvolvidas em áreas muito reduzidas, como é o caso da iniciativa da Rewilding Portugal em Ermo das Águias, concelho de Pinhel, no vale do rio Côa, onde foi introduzida uma nova raça de bovinos – os tauros – com características do extinto auroque. Segundo o biólogo Pedro Prata, director executivo da Rewilding Portugal, a área ocupada conta com 700 hectares. Já a acção de restauro no paul dos Toirões, onde se procura favorecer a migração de herbívoros no vale do Côa, estende-se ao longo de 300 hectares, refere ao PÚBLICO o responsável, que não esteve envolvido no estudo da Current Biology.

10.000 hectares é jardinagem

As iniciativas de renaturalização em Portugal “são todas em áreas muito pequenas”. “Só é possível ter sistemas rewilding sem intervenção humana quando a área é muito grande, ou seja, acima dos 100.000 hectares. Porque a partir daí o factor humano pode sair da equação e o controlos dos herbívoros pode ser feito pelos grandes carnívoros. Os grandes carnívoros têm distribuições bastante amplas e criam conflitos com as comunidades locais. Para nós termos a tranquilidade de ter projectos de rewilding que funcionem sem a presença humana, ou com uma presença muito pequena, nós temos que ter tanto carnívoros como ter herbívoros. E isso requer áreas de grandes dimensões, que nós não temos em Portugal”, refere o investigador.

Miguel Bastos Araújo refere que mesmo que cresça a área de intervenção de organizações que promovem a renaturalização, como a Rewilding Portugal, “dificilmente ultrapassaremos os 10.000 hectares nos próximos anos”. Para o cientista, escala em conservação é crucial: “Como costumo dizer, 10.000 hectares é jardinagem”. Esta falta de escala na área da conservação coloca, para o autor, Portugal numa situação difícil para cumprir os tais 10% de área estrita de conservação até 2030.

“Em Portugal, cerca de 97% território é privado. Então, tudo o que tenha a ver com níveis de conservação mais estrita, onde o uso do território mais importante se prende unicamente com a conservação da natureza e subordina todos os outros usos, é difícil de ser feito contra a vontade dos proprietários”, avalia o cientista, que lamenta que o mapa fundiário nacional se assemelhe a uma manta de retalhos.

Miguel Bastos Araújo diz que, no que toca às metas até 2030 da Estratégia Europeia de Biodiversidade, os 10% de conservação estrita são “o nosso elefante na sala”. Para o cientista, a renaturalização oferece a Portugal uma forma de resolver o problema e cumprir a meta ao longo dos próximos seis anos.

Há três aspectos a ter em conta nessa corrida ecológica até 2030, segundo o co-autor do estudo. O primeiro é o Estado assumir o seu papel e adquirir território em áreas protegidas. O segundo é criar mecanismos que incentivem o sector privado a agir em prol da conservação. Um exemplo é eliminar ou aliviar os impostos aplicados às organizações que estão a actuar na área da renaturalização.

Por fim, Miguel Bastos Araújo considera essencial remunerar os serviços prestados pelo ecossistema, ou seja, recompensar, por exemplo, a função ecológica desempenhada por parcelas de território abrangidas pela rede Natura 2000. “Gostava de ver o Estado a assumir a responsabilidade e o protagonismo de conservação do bem público”, conclui o cientista.