Chico Diaz: “Há uma identificação e um estranhamento entre Portugal e Brasil”

Artista brasileiro, com mais de 40 anos de carreira, afirma que a presença maciça de imigrantes e turistas em Portugal provoca um certo desconforto nos locais, mas o encantamento com o país é grande.

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Chico Diaz se divide entre o Brasil, com novo filme, e Portugal, onde prepara uma peça Arquivo pessoal
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O ator brasileiro Chico Diaz não esconde a sua paixão por Portugal, em especial, por Lisboa, cidade onde os vários tipos de arte estão fervilhando. Em entrevista ao PÚBLICO Brasil reconhece, porém, que uma resistência ao que chama de “invasão” de imigrantes e turistas está criando um certo incômodo entre os portugueses, cujos reflexos puderam ser vistos nas recentes eleições, em que o partido de extrema-direita Chega fez 50 deputados na Assembleia da República.

Para ele, no entanto, apesar do estranhamento ante essa realidade, nada tira o encanto do país europeu, com seu povo, no geral, acolhedor, a comida, os vinhos, a segurança. Ele, por sinal, desembarca novamente na capital portuguesa neste mês de agosto para iniciar os ensaios de uma nova peça, que desenvolve em parceria com o jornalista e autor Ruy Filho. Outros projetos em terras lusitanas também estão em avaliação, mas terão de ser conciliados com a agenda brasileira.

O renomado ator compartilha sua trajetória marcada por uma intensa interação com o cenário cultural português. Diaz traz no currículo mais de 40 anos de arte e vários prêmios, entre eles, o Kikito de Melhor Ator no Festival de Gramado pela atuação em “Corisco & Dadá” (1996) e o de Melhor Ator no Festival de Brasília pelo açougueiro Wellinton Kanibal em “Amarelo Manga” (2002).

Desde 2017, Portugal tem a aberto muitas portas para Chico Diaz. Nessa caminhada, ele interpretou figuras icônicas como Saramago e Fernando Pessoa no filme “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, participou de produções televisivas e de uma exposição de artes.

O ator reflete sobre o impacto do audiovisual na cultura portuguesa, a influência mútua entre Brasil e Portugal e os desafios contemporâneos enfrentados pelos dois países nos campos político e cultural. Diaz mergulha nas complexidades da identidade cultural e nas dinâmicas de uma Lisboa cosmopolita em constante transformação.

Qual é a sua visão sobre o impacto do audiovisual na cultura de Portugal?
Tive a oportunidade de fazer vários trabalhos em Portugal. Desde 2017, tenho estado frequentemente no país. Fiz a “Biografia de um poema” (livro de Carlos Drummond de Andrade, de 1967). Também participei do longa-metragem “O ano da morte de Ricardo Reis”, para o qual eu fui chamado para interpretar Saramago e Fernando Pessoa no mesmo filme. Portugal me deu oportunidades, me abriu muitas portas.

Mas, primeiro, o senhor ficou conhecido entre os portugueses pelas participações em novelas.
Sim, fiz muitas novelas de muita qualidade da TV Globo e que foram sucesso em Portugal. Foram os casos de “Gabriela” e de obras de Gilberto Braga, como “Paraíso Tropical”. Eu me encantei por Portugal.

E depois disso?
Fiz “Rei Lear” (William Shakespeare) e “Vermelho Monet”, filmado em Lisboa, do diretor Halder Gomes (o longa foca em três personagens, e o principal da narrativa é Johannes Van Almeida, um pintor que não é reconhecido no mercado e que está, pouco a pouco, perdendo a visão). Participei do filme “Selva”, de Leonel Vieira, uma produção portuguesa. Essa foi, na minha opinião, a primeira tese moderna sobre o trabalho escravo. Filmamos na Amazônia.

Fiz, ainda, o “Testamento do Senhor Nepomuceno”, de Francisco Manso, um dos mais bem-sucedidos documentaristas portugueses. O longa é uma divertida adaptação para o cinema do romance do escritor caboverdiano Germano de Almeida, sobre um homem que, ao longo de várias décadas, graças a acasos da vida e a uma forte e empreendedora personalidade, tornou-se o mais rico de Cabo Verde. Ou seja, tenho uma experiência bem consolidada em lidar com o cinema português, o que acho muito interessante. Em 2023, fiz a minha exposição de pinturas em Lisboa.

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Como vê a relação entre Brasil e Portugal?
Historicamente, as duas culturas se encantam uma pela outra, são apaixonadas pelas diferenças e pela identificação. Ao mesmo tempo em que há uma identificação, há um estranhamento. Ou seja, historicamente, os portugueses tomaram conta do Brasil. E, aos poucos, estamos fazendo a contra colonização, estamos ocupando Portugal. Acredito que convivem um encantamento e um estranhamento. Somos iguais, mas não somos. Não podemos esquecer que o Império foi aqui (Lisboa). O tempo passou. O centro do Império já não é mais aqui. Há uma paixão, mas até certo ponto. Vejo que Lisboa e Portugal estão mudando rapidamente. Há uma “invasão”, não só brasileira, mas mundial, ao paraíso que outrora era considerado uma pequena aldeia. Lisboa virou um centro cosmopolita, grandioso. As artes discutidas dentro do circuito europeu, ou seja, o cinema, a dança, o teatro, as artes plásticas, principalmente, estão fervilhando.

Como você avalia o streaming?
Novelas são de uma época em que não preponderava a internet. Agora, as pessoas procuram nos seus nichos o que lhes interessa. Ou seja, realmente, a questão das novelas arrefeceu. Digo por parte dos portugueses. Mas eu ainda sou reconhecido nas ruas. Então, penso que as novelas mais antigas marcaram uma geração de portugueses.

E as novelas portuguesas?
As novelas portuguesas também começaram a ter uma assinatura. É muito mais nítida e muito mais firme no interesse de ganhar a população do país. O audiovisual televisivo português cresceu muito.

Qual o impacto das telenovelas brasileiras no processo de produção do audiovisual português?
Creio que a forma inicial, a matriz de produção bebeu muito do histórico do setor no Brasil. Tanto que vários profissionais brasileiros foram trabalhar em Portugal. Só para citar alguns: Maurício Farias e Aguinaldo Silva. Houve, depois, um fluxo de atores brasileiros para Portugal. Agora, os portugueses têm a própria base produtiva.

Quais são seus trabalhos mais recentes no Brasil?
Acabei de fazer a novela “Renascer”. Tenho sondagem de um roteiro para filmar no Maranhão, e outros roteiros estão chegando. Estou de volta ao Brasil porque a questão profissional é mais sólida.

O senhor tem uma peça de teatro agendada para Lisboa?
Sim. Neste mês de agosto, começam os ensaios. Vou fazer em parceria com Ruy Filho, um grande profissional. A peça ainda está sendo escrita.

Como analisa os momentos políticos do Brasil e de Portugal e como vê o papel da arte dentro desse ambiente?
Primeiro, temos de destacar as diferenças de tamanhos desses dois países. O Brasil é enorme, e uma mudança exige uma maturidade diferente. Uma mudança de rota no Brasil é algo extremamente dispendioso, exige muito esforço. Creio que agora estamos numa correção de rota. Depois de anos iluminados, com Luís Inácio e Dilma Rousseff. Tudo isso antes de 2016. Aí veio o golpe contra a ex-presidente Dilma. Vieram tempos obscuros. E ainda tem a questão do outro lá, o inominável.

Fala do ex-presidente Jair Bolsonaro?
Sim, da escuridão a que fomos submetidos. Deixaram a terra arrasada, nos colocaram numa autoestima muito baixa, tiraram a nossa bússola, o nosso norte. Agora, estamos voltando a ser o que somos, um país, uma potência mundial, com diálogo global, atenção à cultura, à inclusão, todos no barco. Esse é um caminho mais luminoso, a meu ver. Claro que requer tempo para que as políticas sejam implantadas.

E Portugal?
Vemos um país pequeno sendo “invadido” (de imigrantes e turistas). E venho sentindo que os portugueses não estão muito satisfeitos com essa “invasão”. Não estou falando dos brasileiros. Falo de todas as etnias que estão chegando. Estão todos encantados por Portugal. E não só pelo espaço físico. Há a democracia, a cordialidade do povo, a comida, os vinhos, as possibilidades e as facilidades. Lisboa se tornou um lugar muito agradável para se estar. As pessoas de todas as latitudes e longitudes descobriram isso, ucranianos, russos, americanos.

E os brasileiros?
Nesse caso, há toda a questão da pós-colonização. Houve, sim, uma concentração demográfica muito superior ao que o português original esperava. Eu vi um começo de reação a isso no início da minha estada em Lisboa.

Como assim?
Reação tipo “Portugal para os portugueses”. Não era assim antes. E está caminhando muito rápido. Comecei a ver os motoristas de aplicativos; são indianos, nepaleses. E senti que haveria uma resposta, que veio nas recentes eleições portuguesas. Foi a subida do Chega (partido de extrema-direita, que fez 50 deputados na Assembleia da República).

Até onde, na sua avaliação, vai esse movimento?
Os portugueses, historicamente, são aventureiros, e sempre acolheram os estrangeiros. Penso que a origem da alma portuguesa é acolhedora, O que temos agora é esse de processo “invasão”. Numa visão do século 21, temos os nômades digitais e as facilidades de prestarem serviços de Portugal. Tudo isso faz com que o país se torne muito agradável. O mundo está muito violento. Assim, quando se encontra um lugar de paz, de harmonia, as pessoas vão para lá. Foi isso o que aconteceu. A consequência foi que os preços dos imóveis subiram e o espaço diminuiu. E qualquer espécie, quando diminui espaço, torna-se um pouco mais agressiva, na resistência da própria sobrevivência. Muitos portugueses se sentem agredidos. Por isso, houve uma reação, houve uma resposta. Portugal é a globalização acolhedora, mas não pode perder a sua identidade. Creio que nós, brasileiros, com a nossa mistura, estamos falando isso, com a nossa identidade.

Os artigos escritos pela equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil

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