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Pierre Aderne: “A melhor forma de se combater o preconceito é com arte, com poesia”
O cantor e compositor busca inspiração na infância para produzir encontros em que todos têm voz. Ele ressalta que a língua portuguesa é uma só e rechaça a xenofobia disseminada pela extrema-direita.
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O corre-corre na casa do pequeno Pierre era sinal de que algo de bom estava por vir. Os pais do garoto, os professores Laís Aderne e Armando Faria Neves, haviam arregimentado vários vizinhos da comunidade para preparar a comilança. Afinal, os cavaleiros que carregavam a imagem do Divino Espírito Santo estavam para chegar. Não havia tempo a perder para que aquele ritual religioso se transformasse numa festa regada a muita música e alegria.
O cheiro exalado da cozinha da casa dos pais ainda inebria o hoje cantor, compositor e produtor Pierre Aderne, de 58 anos, que há 13 vive em Portugal e tem mudado a cena cultural de Lisboa com o projeto “Rua das Pretas”. “Essas lembranças estão marcadas na minha memória, uma infância no meio do mato, em Brasília. Era incrível. Todo mundo se juntava para preparar a comida até que os cavaleiros chegassem. “Me inspiro muito naquelas festas (características do interior de Goiás) para produzir cultura”, diz.
A arte, por sinal, sempre esteve presente na vida de Pierre, que nasceu na França, quando os pais estavam vivendo em Paris – os dois se conheceram lá quando estudantes. “Venho de uma família de artistas, de arte educadores, artistas plásticos, atores, alguns músicos, literatos. Poderia ter seguido por qualquer outra área, mas, como tinha dentro de casa esse núcleo de produção artística, sempre estive envolvido com essa questão da produção cultural, da arte em comunidade”, afirma. “Sou cantor, compositor e agitador cultural”, define-se.
Esse mergulho cultural começou, efetivamente, quando Pierre tinha dois anos e os pais – ele, português; ela, brasileira – deixaram Paris em direção a Brasília. A nova capital do Brasil estava nascendo e, com ela, a efervescência nas artes começou a ganhar corpo. Os professores Laís, de arte, e Armando, de literatura, assumiram a missão de tornar realidade a Universidade de Brasília (UnB). “Passei toda a minha infância e parte da adolescência ali, mas sempre viajando para o Rio de Janeiro e para o Nordeste. Minha mãe implantou o curso de artes da Universidade da Paraíba. Por isso, digo de sou fruto dessas terras por onde andei”, comenta.
Pierre está em Portugal há 13 anos, mas vinha ao país todos os anos desde 2005 para fazer concertos. A decisão de fincar raízes na terra que o pai havia deixado ainda muito moço foi tomada em 2011. “Desembarquei em Portugal para filmar um documentário que tratava da aproximação da música brasileira com a música portuguesa e a afro-lusófona. Estava distante das matrizes rítmicas e das formas de escritas locais. Conhecia muito pouco da música portuguesa, como o fado de Amália Rodrigues e o pop vira de Roberto Leal”, relembra.
Para o cantor e compositor, era um privilégio estar perto de Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau e a música Tito Paris, Paulo Flores, Jorge Palma, Lorna e tantos outros. “Foi, talvez, o motivo principal que me fez decidir morar em Portugal. “A mistura de fados, funaná, bossas, cirandas, sambas, tudo junto no mesmo lugar. Isso foi sedutor para mim”, ressalta.
Fantástico clube
Toda a miscelânea musical com a qual Pierre conviveu ao longo dos anos acabou resultando no “Rua das Pretas”. O projeto começou como um sarau, um movimento natural, pois, para ele, arte sempre foi feita em comunidade, nunca sozinha. Além das festas do Divino Espírito Santo, as rodas musicais replicavam as famosas reuniões de cantores e compositores liderados por Tom Jobim, na casa dele, na Rua Nascimento e Silva, no bairro de Ipanema, no Rio. “Trouxe todas essas influências para a minha casa em Lisboa”, conta.
Quis o destino, como bem define o artista, que o primeiro disco dele fosse lançado no Japão e alguém de lá comentou no Instagram, em uma foto reunindo músicos de várias vertentes, como Caetano, Gil, Camané e Carminho, que, quem passasse por Lisboa, não deixasse de visitar aquele clube fantástico de jazz. “O tal clube era a minha casa. Eu morava na Rua das Pretas”, afirma. Diante de tamanha repercussão, a mulher de Pierre, que é produtora dele, falou: “Essa história é muito boa, até porque você convida 40 amigos para cá e, no final, são caixas de cerveja, cachaça, vinho. Da próxima vez, vou vender bilhete para ajudar a pagar o sarau”.
Pierre acabou levando aquilo meio que na brincadeira. “Mas, um dia, cheguei em casa, tinha sarau e ela tinha vendido 30 bilhetes. Eram 30 pessoas que eu não conhecia, que estavam loucas para conhecer o que era a minha casa, o que acontecia naquele jazz club acústico”, recorda. “Eu me diverti muito. Foi bonito demais, porque me lembrou a minha casa na infância, das festas dos cavaleiros do Divino Espírito Santo, que as pessoas da comunidade frequentavam”, acrescenta.
Os saraus com público se repetiram, mas, após a terceira edição, viu-se que a casa de Pierre havia ficado pequena demais. Foi então um dos frequentadores assíduos das rodas musicais, um francês, ofereceu um palacete que ele tinha no bairro do Príncipe Real. “Cabiam 100 pessoas naquele palacete lindo, com vista para o Tejo, a Ponte 25 de Abril, as estrelas”, rememora. Era para ser um sábado, mas os saraus se estenderam por quatro anos. O sucesso foi tanto, que os encontros foram parar no Coliseu dos Recreios, percorreram Portugal de Norte a Sul, passaram por vários países da Europa e se transformaram em série de tevê.
Vida de imigrante
A trajetória vitoriosa de Pierre em Portugal não esconde, porém, as dificuldades de se fazer cultura em um país que não é o seu de nascimento “É sempre difícil fazer cultura em qualquer local. E a cultura não pode ser algo extraordinário, tem de ser ordinária. Há uma frase que sempre ouvi na casa da minha mãe. Era uma frase do Sting, que dizia que ‘perseverança traz boa sorte’. Então, fazer cultura é um exercício diário”, diz. E emenda: “Eu acredito que o mais difícil é você ser da cultura e não levar a vida dentro da cultura”.
O artista destaca que os portugueses têm paixão pela música brasileira, que, na avaliação dele, foi transformadora no mundo. “A Bossa Nova com Vinícius, Tom Jobim, Baden Powell, João Gilberto. Em Portugal, as trilhas sonoras de novelas marcaram épocas, com Chico Buarque, Caetano, Gil, Gal Costa, Martinho da Vila, Dorival Caymmi, Djavan”, lista. “É verdade, porém, que hoje é um pouco diferente”, frisa.
Na avaliação de Pierre, a música portuguesa vive um momento de afirmação. “Assim, para os artistas que chegam no país, talvez sintam uma certa dificuldade, uma vez que os teatros estão sendo ocupados mais pela produção local”, assinala. Ante essa realidade, ele crê que o mais importante neste momento é pensar que tudo é música de língua portuguesa. E Lisboa se tornou a capital da música de língua portuguesa.
“Quando escutamos uma música em inglês, não temos a preocupação de, na primeira audição, perceber de que país é o artista que está cantando. Se é da Nova Zelândia, do Reino Unido, dos Estados Unidos”, pontua. “No caso das músicas em português, passamos demasiado tempo nos preocupando em colocar a bandeira à frente da língua. Quando um chinês, um dinamarquês ou um americano escuta alguém cantando em português, não sabe de onde é o artista. Depois, se quiser, o ouvinte vai descobrir a origem do cantor, se do Brasil, de Cabo Verde, de Portugal, de Angola. O importante é que a música é em português”, pondera.
Casa grande e senzala
Pierre afirma que está ciente de que há xenofobia em Portugal, assim como existe racismo, misoginia, homofobia. “No Rio de Janeiro, cidade em que vivi, infelizmente, há o preconceito social. É a capital brasileira da casa grande e senzala”, destaca, numa referência ao que ocorria nos tempos da escravidão. Ele assegura que nunca sofreu preconceito dentro da área em que atua. “Sempre fiz grandes concertos, sempre frequentei os grandes festivais, as maiores salas de música de Portugal, e não senti preconceito”, ressalta. No dia a dia, sim.
Mas ele sempre adotou uma postura firme em relação a esse tema. “Com o tempo, percebi que queriam me colocar num lugar que eu não queria estar, que era o brasileiro de estimação", enfatiza. “Agora, eu não ligo muito para isso, porque só pode ser ignorância alguém ter preconceito com raça, com procedência. Portugal inventou o fado, a navegação e a emigração. Só no Rio de Janeiro, em 1906, 20% da população eram portugueses, que viviam em cortiços com mulatos, pretos, pobres, analfabetos, vindos do Norte de Portugal e recebidos como brasileiros”, complementa.
No entender de Pierre, os brasileiros que vivem em Portugal não deveriam ser chamados de imigrantes. “Somos um povo, que tem a ligação com a língua portuguesa. E nós, também, não somos mais Pindorama e não tem ouro para devolver”, afirma. “Nós somos frutos da invasão, do descobrimento, do genocídio, dessa mistura. Nós somos também portugueses”, sentencia. E vai além: “No Rio de Janeiro, sou branco. Vim sofrer preconceito na Inglaterra, porque descobri que lá eu não sou branco. Em Portugal, o preconceito é uma tática da extrema-direita de encontrar um inimigo absoluto”.
O cantor e compositor acredita que "a melhor forma de combater a intolerância é com arte, com poesia". “Escrevi uma canção lançada há pouco, que se chama ‘Cartão de cidadão’. É um resumo poético do que relatei. O mais importante nesse momento é percebermos a riqueza da nossa cultura, e Lisboa simboliza muito isso. Mais uma vez: quem tem preconceito ou não conhece ou não reconhece a própria história”, diz.
Turnê e disco novo
A capacidade criativa de Pierre está a todo vapor. Em setembro, ele apresentará no Rio de Janeiro o concerto que passou pelo Coliseu dos Recreios e que reúne cinco compositores da geração dele e com os quais ele mais faz música: Moacir Luz, Pedro Luiz, Rodrigo Maranhão, Edu Krieger e Gabriel Moura. “Nos últimos 20 anos, compusemos músicas que se tornaram conhecidas e sucesso nas vozes de Maria Betânia, Seu Jorge, Martina da Vila, Beth Carvalho, Ney Matogrosso, Maria Rita e uma série de artistas”, destaca. A turnê passará por outros estados brasileiros.
Há, também, um álbum novo que está sendo gravado, com o produtor norte-americano Larry Klein. “São músicas que eu compus ao longo da vida para artistas que não são da língua portuguesa, são do jazz, como Madeleine Peyroux, Melody Gardot, Jesse Harris, Brian Cullman e Ana María Jopek. O disco vai se chamar ‘Samba para inglês ver’. Dentro do projeto ‘Rua das Pretas’, Pierre montou um teatro, denominado ‘Língua de uma nota só’, que tem na sua gênese a vontade de ser um pouso de folia para a comunidade imigrante cultural brasileira e lusófona.
“O artista que está chegando em Portugal, para ganhar dinheiro, tem de parar num bar, num quiosque, para se apresentar. No nosso teatro, ele poderá se apresentar com todas as condições para fazer a arte dele com dignidade, com um auditório de 80 lugares, som, luz, respeitável público, mídia. Tudo vai ser gravado porque é importantíssimo a gente pensar no acervo, no legado que esse artista deixa”, explica. “Esse artista voltará para o Brasil com um single, um vídeo sobre o trabalho dele. É um projeto de curto muito”, conclui, ele, que é colunista do PÚBLICO Brasil.