Ilê Aiyê quer retomar projetos sociais e elogia Presidente de Portugal

O bloco de Salvador está com três escolas paradas por falta de verbas. Para os seus integrantes, Marcelo Rebelo de Sousa fez bem em levantar discussão sobre reparação histórica às ex-colônias.

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O grupo baiano Ilê Aiyê com 50 anos passou por Lisboa em julho Vicente Nunes
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O sucesso retumbante da turnê europeia, que incluiu dois shows em Portugal — um, em Amarante, outro, em Lisboa —, dá um grande alento ao grupo baiano Ilê Aiyê, que, aos 50 anos, enfrenta uma série de desafios. O mais premente deles é retomar as atividades das três escolas que mantém na periferia de Salvador, a capital baiana. Praticamente, tudo está parado desde o início da pandemia do novo coronavírus, em 2020, por falta de apoio financeiro. O dinheiro arrecadado com os shows só tem sido suficiente para manter o funcionamento da sede do grupo, conhecido como o mais belo dos belos.

Na visão de três dos representantes do Ilê Aiyê que se apresentaram em Portugal, há “um racismo velado” entre os empresários que poderiam estar contribuindo para programas sociais que atendem milhares de jovens por ano, cujo futuro está ameaçado pela violência e pela pobreza. “Enquanto os patrocinadores se gabam de dar R$ 2 milhões (cerca de 330 mil euros) para um único artista, reclamam de repassar R$ 200 mil (perto de 33 mil euros) para o Ilê Aiyê. É como se fosse um problema ajudar a população preta e pobre”, diz Sandro Teles, músico e produtor do bloco carnavalesco. Ele acrescenta: “Mesmo sendo a cidade mais negra fora da África, Salvador é extremamente racista”.

Diretor e um dos fundadores do mais belo dos belos, Vivaldo Boaventura dos Santos afirma que a sobrevivência do Ilê Aiyê — em iorubá, casa e terra — pode ser definida em uma palavra: resistência. “Desde a sua fundação, o bloco enfrentou preconceitos”, frisa. Era 1974, auge da ditadura militar no Brasil e ano em que Portugal retomou a democracia.

A ideia inicial era a de que a agremiação se chamasse “Poder dos negros”, uma vez que só seria integrado por pretos. Mas esse nome foi vetado, e a estratégia para que fosse liberado pela polícia foi usar um nome de origem africana. “Até então, os blocos de Salvador eram quase que totalmente brancos. Apenas negros que apresentassem comprovantes de residência de áreas nobres de Salvador eram aceitos nos desfiles”, rememora.

No entender de Santos, a elitização dos blocos carnavalescos de Salvador, com exclusão dos negros das periferias, continua. “Isso se dá por meio da cobrança para a participação nos desfiles. Cada pessoa tem de pagar R$ 4 mil (quase 700 euros)”, afirma. “Com a criação do Ilê Aiyê, houve uma mudança na concepção dos negros. Muitos passaram a valorizar a negritude, seja na forma de se apresentar, seja por meio dos cabelos e das roupas coloridas”, complementa Sandro Teles.

Para os músicos do mais belo dos belos, o Ilê Aiyê optou por contar as histórias que ninguém contava, mostrando uma África real, não aquela disseminada pelo discurso vigente, cheia de doenças, e do Tarzan, um homem branco, rei das selvas. “Passamos a mostrar que não éramos descendentes de escravos, mas de reis e rainhas que foram escravizados”, destaca Teles.

Segundo a educadora Soraia de Souza, antes de entrar para o bloco do bairro do Curuzu, ela sentia medo por ser negra. “Alisava os cabelos, não usava cores fortes, estampadas, tentava quase ficar invisível. A partir do Ilê Aiyê, me tornei quem sou de verdade, com meus cabelos originais, pintados de vermelho ou da cor que eu quiser”, destaca.

Acerto de contas

A forma carinhosa com que foram tratados em Portugal não diminui, porém, a preocupação dos músicos com o aumento da intolerância no país contra imigrantes, sobretudo os brasileiros. Esse movimento, ressaltam os artistas, tem sido incentivado pela extrema-direita. “Vimos isso no Brasil, nos quatro anos do governo Bolsonaro. A cultura foi massacrada e o ódio passou a imperar. Foi um período de escuridão”, diz Teles.

Na visão dele, é alentador saber que o Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, levantou a discussão sobre a reparação histórica às ex-colônias lusitanas, como o Brasil. “Não sei como seria feita essa reparação, mas o fato de o tema entrar em discussão é importante”, assinala. “É uma manifestação importante”, endossa Vivaldo dos Santos.

No Brasil, esse processo de reparação passa, por exemplo, pelo sistema de cotas para negros nas universidades públicas, que, ao longo do tempo, deixaram de ser redutos da elite branca e, hoje, estão mais diversas.

Santos acrescenta que vê oportunidades para que Portugal possa replicar o trabalho social do Ilê Aiyê entre as comunidades brasileira e dos países africanos que falam português. Segundo ele, não há nada nesse sentido sendo colocado em prática. Já existem, no entanto, integrantes do mais belo dos belos vivendo e trabalhando em terras lusitanas e em vários países da Europa. Segundo Santos, por meio da música, eles fazem um trabalho de conscientização sobre direitos dos pretos.

O diretor e um dos fundadores do Ilê Aiyê espera que, até 2025, todas as três escolas do bloco — a Mãe Hilda, de ensino básico; a Banda Erê, musical; e a Senzala do Barro Preto, profissionalizante — tenham retomadas suas atividades, com o apoio de empresas, entre elas, a Petrobras, que, até o governo de Dilma Rousseff era uma das principais contribuintes para os projetos sociais do bloco.
“Desde o impeachment da presidente Dilma, a Petrobras se afastou do Ilê Aiyê. Estamos esperançosos de que, com o atual governo Lula, as parcerias sejam retomadas”, ressalta.

Os artigos escritos pela equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil

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