Ameaça de greve na Aima deixa brasileiros preocupados

Início da paralisação está marcado para 22 de agosto e deve se estender até 31 de dezembro. Servidores querem horas extras e não trabalhar aos fins de semana. Há mais de 400 mil processos pendentes.

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Funcionários da Aima prometem cruzar os braços caso o governo não aceite pagar horas extras. Imigrantes serão prejudicados Nuno Ferreira Santos
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O anúncio de uma possível greve dos trabalhadores da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (Aima) a partir de 22 de agosto deixou em pânico os imigrantes que estão à espera de documentação emitida pelo órgão. Os principais atingidos pela eventual paralisação serão os brasileiros, que representam quase a metade dos mais de 400 mil processos que estão pendentes há mais de um ano.

Os números oficiais indicam que são 413 mil os processos de regularização em atrasados. Mas, segundo a advogada Priscila Corrêa, é possível que as pendências sejam muito maiores. “Além desses processos, há cerca de 170 mil pessoas com vistos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que pedem para mudá-los para autorizações de residência, os casos de reagrupamento familiar e as renovações de vistos, que podem chegar a mais de 400 mil”, afirma.

A ameaça de greve contém três reivindicações, conforme o comunicado da Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais: pagamento de horas extraordinárias e progressões de carreira por tempo de serviço; definição de servidores por área; e cumprimento dos horários de trabalho sem ultrapassar os limites previstos na lei. Caso não haja acordo com o governo português em torno dessas reivindicações, a paralisação começará em 22 de agosto, estendendo-se até dezembro. Procurada, a Aima não se manifestou.

A possibilidade de greve dos servidores da Aima está prevista em lei, mas, na opinião do advogado Bruno Gutman, especializado em direito migratório, as centenas de milhares de imigrantes que estão com processos pendentes é que vão sofrer o impacto. “Se a situação está ruim, vai ficar pior ainda”, diz. “Vai piorar drasticamente a vida de milhares de requerentes que estão aguardando para se regularizarem em Portugal” acrescenta. Para ele, os mecanismos criados pelo governo para estabelecer uma força-tarefa e colocar em dia os pedidos pendentes na AIMA têm se mostrado pouco eficazes.

Solução dos tribunais

Com os atrasos nos processos que chegam a levar anos, a solução encontrada por alguns advogados é recorrer à Justiça para obrigar a Aima a fazer o trabalho que lhe cabe. “Efetivamente, nós só temos conseguido sucesso em casos de judicialização de processos. Pelos meios administrativos, não conseguimos resolver os problemas”, afirma o advogado Diego Mayer, também especializado em imigração.

Isso porque o prazo legal para que a Aima resolva um processo não pode ultrapassar 90 dias. Se demorar mais do que isso, as pessoas podem entrar com um processo para obrigar a agência a cumprir a lei. “Há juízes condenando não a Aima, mas funcionários da agência, obrigando que eles resolvam os problemas num determinado prazo. Se não fizerem isso, recebem multa. Isso porque os atrasos estão sobrecarregando o sistema judiciário”, ressalta Mayer.

Gutman compara a situação na Aima à dos médicos, que vêm fazendo greve por horas extraordinárias. “Estamos vendo algo semelhante ao que ocorre na área da saúde. Os médicos, assim como os funcionários da Aima, estão sobrecarregados, fazem horas extraordinárias que têm que ser pagas. Não adianta pedir mais horas além do que é humanamente possível. Não se pode pedir que os funcionários trabalhem todos os fins de semana”, frisa.

No entender dos especialistas, para resolver o problema, que é seríssimo, o governo precisa fazer um concurso público e contratar mais trabalhadores para a Aima e, nesse meio tempo, obter mão de obra extraordinária para adiantar os processos. “Do jeito que está, ficou inviável”, assinala Gutman.

Priscila considera que a atual situação é completamente ilegal. “É importante ter atenção que os imigrantes contribuem muito para a economia de Portugal. Eles são responsáveis por uma arrecadação bilionária, que ajuda a sustentar as aposentadorias de uma boa fatia de portugueses. Negar direitos a essa população é um crime, ideologicamente falando, e uma infração administrativa grave, cuja necessidade de reparo supera as vicissitudes da insatisfação das relações de emprego da Administração Pública”, enfatiza.

Perigo de vida

A advogada cita o caso de clientes que estão em situação de risco de morte por falta de documentação que regularize a permanência do país. “Tenho casos em meu escritório de pessoas que estão em risco de morte. Uma delas, devido a um câncer, e outra com uma doença gravíssima. Elas necessitam de cuidados de saúde e de tratamento médico adequado e contínuo e, sem autorização de residência, estão impedidas de ter amplo acesso ao sistema de saúde, apesar de pagarem todos os impostos”, detalha. “Essas pessoas não podem retornar a seus países de origem porque a estrutura familiar de suporte se encontra toda em Portugal. Não lhes resta nenhuma casa para onde retornar. A situação é dramática”, alerta.

Gutman afirma que tem um caso que não está resolvido na própria família. “Minha sogra, que tem 84 anos, reside connosco, mas ela está com a autorização de residência caducada. Mesmo eu sendo advogado e tendo a nacionalidade portuguesa, não consigo renovar a autorização de residência dela”, revela. “O caso da minha sogra é o mais leve. Ela, dificilmente, vai ter problemas. Mas um sujeito que trabalha como motorista de aplicativo, por exemplo, se for parado pela polícia, terá problemas. Não dá para a polícia fazer uma fiscalização rigorosa, se a situação é culpa do governo”, diz.

Meses de espera

Morando em Braga porque fica mais barato do que viver na capital portuguesa, a psicóloga Ana Paula Machado, 41 anos, que faz doutorado em sociologia na Universidade de Lisboa chegou em Portugal com todos os papéis em ordem. Nem assim conseguiu a autorização de residência.

“Estou em Portugal desde 30 de setembro de 2023. Vim com um visto de estudante e com agendamento para entrevista para ter a autorização de residência. A entrevista foi no dia 30 de outubro, o dia em que o SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) virou Aima. Eu fui a quarta pessoa a ser atendida. Já se passaram mais de nove meses e ainda não tenho retorno”, destaca.

A falta do documento tem consequências na sua vida acadêmica. “Não posso sair para apresentar trabalhos no doutorado. Em maio deste ano, iria para um congresso universitário na Universidade de Jaume I, na Espanha, e não embarquei por falta da autorização de residência”, acrescenta.

Salvo no laço

Para o cinegrafista Fillipe Coutinho, 35, a falta de documentos quase fez com que ele quase fosse expulso da União Europeia na Itália. “Em abril deste ano, estava em Milão, na área de embarque, e me pediram o passaporte e um documento europeu de residência. Mostrei minha autorização de residência, que estava caducada. Eu disse que, por causa de atrasos administrativos, o documento tinha validade até seis meses depois de vencido. Eles acreditaram e deixaram eu retornar para Portugal”, conta.

Fillipe afirma que foi um acaso que fez com que se estabelecesse em Portugal. “Estava na Espanha em 2020 e, com a pandemia, deixaram de pagar os salários. Estava voltando para o Brasil. Era abril, e fecharam o espaço aéreo. Por isso, fiquei em Portugal”, lembra. Neste momento, ele espera a segunda autorização de residência. “Fiz a renovação online e, no site da Aima, está dito que o processo foi concluído. Eles geram o boleto, você paga e é só esperar”, explica.

Sobre a greve, ele reage com ironia. “Parece que estão em greve desde que eu fiz esse processo. Disseram que levaria 60 dias para a entrega da documentação, mas esse prazo já esgotou. A renovação está concluída desde maio. Eu começo a ficar preocupado, porque, de certa forma, estou preso em Portugal”, diz. Ele precisa do documento por motivos profissionais: “Por causa do trabalho, viajo muitas vezes. Vou para França, Espanha, Itália e, sem o documento, eu posso perder contratos”, reclama.

Sem férias

Para o professor auxiliar Neto Machado, 34, que veio de Belém do Pará e está morando em Cascais, desde julho do ano passado, o grande problema da falta de autorização de residência é não poder sair de Portugal. “Só posso ir para o Brasil, não posso ir para nenhum outro lugar. Nas férias deste ano, planejava ir para o Egito, mas não vou porque não sei se vou poder voltar. Não vou correr esse risco”, ressalta.

Ele conta que veio para Portugal por reagrupamento familiar. “Contratei um advogado para fazer os trâmites. Estou regular, mas não legalizado. Tenho todos os documentos possíveis e imagináveis, incluindo a Manifestação de Interesse, mas isso não resolve. Falta a autorização de residência”, afirma. Ele se acha injustiçado: “Eu pago Imposto de Renda em Portugal desde o primeiro dia que pisei no país. Não posso sair, nem viajar, pelo simples fato de eu ser imigrante”, lamenta.

Os artigos escritos pela equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil

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