Portugal: o baldio de Verdelhos é a floresta que alimenta uma comunidade
No terceiro artigo de uma série de quatro histórias sobre as florestas, falamos sobre o baldio de Verdelhos, terra de todos, que protege a floresta, contribui para a economia local e serve as pessoas.
Veja aqui os artigos já publicados desta série:
- Há três florestas europeias que emitem mais gases poluentes do que absorvem e uma delas é portuguesa
- O eucaliptal português: um diagnóstico de má gestão e abandono
Terra de todos, o baldio é uma forma de organização centenária. No coração da serra da Estrela, há um que muitos apontam como exemplo de boa gestão florestal. Mas não só: o baldio de Verdelhos alimenta toda uma comunidade. Num interior desertificado e numa região com memórias dolorosas de fogos florestais, o baldio de Verdelhos protege a floresta, contribui para a economia local e serve as pessoas que lá vivem.
“O pinheiro-bravo é abundante e tem um terreno fértil. É uma árvore que, além de ser característica desta zona, tem muita valência a nível socioeconómico para a economia local” – palavras de David Martins, presidente do baldio de Verdelhos. O pinheiro-bravo é uma das duas espécies dominantes na floresta portuguesa. Em Verdelhos, numa terra comunitária gerida pelas pessoas que lá vivem, o pinhal é uma das mais importantes actividades económicas.
Encaixada no vale do Beijames, a aldeia de Verdelhos vê-se, inteira, dos montes à volta. A freguesia do mesmo nome, do concelho da Covilhã, está totalmente integrada no Parque Natural da Serra da Estrela. Tem 500 habitantes, mas um baldio com mais de 2000 hectares.
Na beira da estrada, junto a uma área de pinhal, David Martins observa os trabalhos de limpeza do mato e explica que o pinheiro-bravo é um investimento a médio e longo prazo. Antigo motorista de transportes públicos é, desde 2018, o presidente do conselho directivo do baldio de Verdelhos.
Os baldios são formas centenárias de propriedade e gestão da terra. Na Região Norte e Centro subsistem ainda muitos, alguns geridos em parceria com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), outros sob gestão autónoma. Num baldio, ninguém é dono da terra. Todos se servem dela e todos participam na gestão. O baldio de Verdelhos tem uma assembleia de compartes, de que fazem parte todos os habitantes de Verdelhos, um conselho directivo e um conselho fiscal. “Os baldios são o tipo de gestão mais liberal que existe. Toda a comunidade tem um papel interventivo”, explica David.
O presidente do baldio conhece bem a floresta e as dinâmicas desta comunidade. É natural desta terra de madeireiros e em criança passava as férias a trabalhar na floresta. “Acabas por adquirir muito conhecimento prático. É lógico que as universidades nos podem ensinar a parte teórica, mas a parte prática só no terreno é que se consegue desenvolver”, conta. Foi assim, junto de pessoas mais velhas e experientes, que ganhou o gosto à floresta.
Como evitar a catástrofe
Agosto de 2022 é um mês de má memória para a serra da Estrela. Perderam-se 28 mil hectares num incêndio que foi considerado o pior na região em quase 50 anos. O baldio de Verdelhos não foi poupado. A freguesia de que faz parte foi uma das mais afectadas: 78,2% da sua área ardeu. “O incêndio de 2022 foi catastrófico para nós. Veio varrer quase completamente toda a nossa mancha florestal”, recorda David. O presidente do baldio garante, no entanto, que poderia ter sido pior: “Resta-nos aqui um bocadinho, graças às intervenções e graças à gestão florestal que tivemos antes do incêndio”.
José Maria Saraiva, presidente da Associação Cultural Amigos da Serra da Estrela (ASE), recorda 2005, 2017 e 2022 como fogos muito violentos num ciclo muito curto. Um ano particularmente “terrível” foi o de 2017, que varreu a Região Centro, levando à morte de uma centena de pessoas e a perdas materiais e de património natural com poucos precedentes – “para além da emissão de carbono da vegetação, florestas e matas”, acrescenta José Maria.
Olhando para o fluxo líquido de gases de efeito de estufa (GEE) da floresta portuguesa, a Zona Centro salta à vista. Na perda líquida de carbono do ecossistema florestal, calculado através da diferença entre emissões e remoções de emissões de CO2 equivalente (medida utilizada internacionalmente para criar uma equivalência entre todos os GEE e o CO2), a floresta desta região mostra um balanço negativo no período entre 2001 e 2023. Como mostrámos no primeiro artigo desta série, embora a floresta portuguesa seja um sumidouro de GEE, é também evidente que esse efeito é revertido em anos de grandes incêndios.
No rescaldo dos incêndios de 2022, a presidente da direcção da QUERCUS disse que a limpeza do coberto vegetal não tinha sido bem feita. Em declarações à agência Lusa, Alexandra Azevedo garantiu que esse processo de limpeza tinha acabado por destruir o bosque e, assim, bloquear o ciclo da água. A dirigente da Quercus reforçou, na altura, que o combate aos incêndios se faz também com árvores, especificamente aquelas que são resistentes ao fogo, como os carvalhos, as azinheiras, os freixos e as plantas arbustivas.
“Hoje, após um corte, eles limpam a floresta quase como um aspirador”, concorda José Maria Saraiva. “O material lenhoso é matéria orgânica, tem que ficar lá porque as montanhas estão muito expostas à erosão. Depois das árvores serem cortadas é importante que fiquem lá os resíduos para recuperar o solo, evitar a erosão, barrando o caminho à dinâmica das águas, fazendo com que estas façam a recarga dos lençóis freáticos, em vez de arrastar tudo à sua frente como tem sucedido.
Reduzindo a dimensão do material lenhoso, estamos a acelerar o seu processo de decomposição e ao mesmo tempo a minimizar os riscos de combustividade, porque o material apodrece mais rápido e ajuda a recuperar o solo. Se retirarmos esse material, não há possibilidades de as montanhas recuperarem da perda de solo, ficando cada vez mais estéreis, por falta de terra que garanta o suporte da vegetação”, explica o presidente da ASE, que acrescenta que já tinha alertado para os perigos desta limpeza indiscriminada.
A presença de árvores mais resistentes ao fogo é, para a ASE, vital. José Maria Saraiva conta que em 2022, nos lugares em que havia esse tipo de espécies, elas foram capazes de travar a progressão das chamas, que baixaram à manta morta, um mundo de microorganismos que vive por baixo de folhas e árvores caídas no solo e concentra um teor de humidade elevado, capaz de retardar o avanço das chamas e facilitar o combate. José Maria não se conforma com a perda desse património natural no processo de limpeza: “Em termos de biodiversidade, foi uma perda irreparável tudo aquilo que se fez aqui.”
A preocupação com a erosão causada pelos incêndios e a necessidade de criação de uma manta morta que permita a regeneração do solo não é assunto novo. Há quase 20 anos, em 2005, José Maria Saraiva, citado pelo Diário de Notícias, dizia que era urgente colocar taludes e criar vegetação nas encostas.
Olhando para trás, José Maria é categórico: “Ninguém fez nada. E em 2017 também ninguém fez nada”. “As ZIF [Zonas de Intervenção Florestal] não fizeram nada. A única coisa que fizeram foi as faixas de contenção, irracional nalguns casos, junto às localidades e junto a alguns povoamentos. O que é preciso fazer não é essa limpeza, mas alterar o modelo de povoamento. É ir reduzindo os povoamentos de pinheiro-bravo, compartimentando-os com outras espécies. A única intervenção que houve foi precisamente as faixas de contenção, a limpeza, ou seja, não houve povoamento, não houve plantações, não houve nada”, lamenta. A ASE mostra-se ainda muito preocupada com um contínuo processo erosivo, criado pela retirada de madeira com maquinaria que cria nas encostas canais de escoamento.
Verdelhos é prova viva da importância de espécies ditas resistentes. David Martins e José Manuel Seguro, vice-presidente do baldio, apontam para uma encosta coberta de castanheiros e desenham o trajecto do incêndio de 2022. Os dois contam que as chamas morreram ali, frente àquela fortaleza natural, que não deixou o fogo avançar, conservando, do outro lado, terrenos e casas intactos.
De frente para o vale, os dois vão nomeando as diferentes espécies de árvores que dali se vêem: azinheiras, carvalhos, castanheiros e, claro, pinheiros. As três primeiras pertencem ao grupo das folhosas e, segundo David, surgiram ali por regeneração natural. O pinheiro, uma árvore resinosa, cumpre, explica, uma função essencial: “O pinheiro está a fazer a protecção da folhosa. Mais tarde, a resinosa é cortada e fica a folhosa no seu habitat natural, porque cresceu aqui encostada sob protecção do pinheiro”. Para além desta regeneração natural de folhosas para criar uma descontinuidade entre os pinheiros-bravos, o baldio aposta nas faixas de gestão de combustível. “Imagine que um hectare tem 500 pés de folhosas: nós pomos 300 nas faixas de gestão”, explica David Martins.
As faixas de gestão de combustível são áreas de onde é retirada parte ou toda a biomassa vegetal, com o objectivo de controlar a progressão de um eventual incêndio. “Graças a esta intervenção, conseguimos controlar o fogo”, diz David, recordando o último grande incêndio. “Os bombeiros só intervieram porque tinham condições de segurança para fazê-lo”.
As faixas são bem visíveis nas encostas de Verdelhos. São corredores largos com muito pouca vegetação, algum mato rasteiro, entre pinheiros altos dos dois lados. Estas medidas são tão mais importantes quando falamos de uma espécie que, como explica o Centro Pinus, representante da fileira industrial do pinho, é bastante combustível. “Regra geral, podemos simplificar e dizer que o eucalipto e o pinheiro-bravo são ambos espécies que podem ser muito combustíveis e que áreas muito grandes de pinheiro e eucalipto sem descontinuidade não são interessantes”, diz a directora executiva da associação, Susana Carneiro.
Parte desta estratégia de resistência aos incêndios é também a prática de fogos controlados. O grupo de peritos em incêndios rurais, que analisou os incêndios de 2022 na serra da Estrela, salientou precisamente esta prática, dizendo que os fogos controlados no pinhal do baldio de Verdelhos terão possivelmente ajudado as operações de combate ao fogo. Nesse mesmo relatório, publicado na Primavera de 2023, os peritos elencam várias críticas à prevenção do fogo na região.
A co-gestão: uma relação difícil com o ICNF, em Verdelhos e não só
Este trabalho de gestão e, especificamente de protecção contra o fogo, foi, segundo David Martins, sendo dificultado pelo ICNF no tempo em que o baldio esteve em co-gestão, até 2019. “A experiência com eles foi um ano. A comunidade viu logo que não valia a pena. A melhor coisa foi sairmos”, diz, categórico, David Martins. A comunicação com o instituto, garante, foi sempre difícil e vários pedidos do baldio ficaram sem resposta concreta.
Depois da saída da co-gestão, essa relação não terá melhorado. Particularmente em relação ao Parque Natural da Serra da Estrela (PNSE), em que o baldio se insere e cuja gestão é também da responsabilidade do ICNF, David mostra-se desiludido: “O Parque Natural da Serra da Estrela nunca foi amigo, nunca cooperou com este tipo de intervenções. Nós fartámo-nos de pedir parceria, apoio técnico, até aconselhamento, e isto tudo nos foi negado porque nós estávamos fora da co-gestão. Não se preocuparam nem quiseram cooperar. E quando cooperaram foi para autuar. O parque veio levantar uns autos, um de 12 mil euros, por andarmos a cortar mato e gerir os logradouros”, conta. A versão do baldio é a de que foi necessário limpar um logradouro, ou seja, um terreno comunitário que pode ser usado para a pastagem de gado. Pela proximidade ao povoamento, o baldio viu nessa limpeza uma acção essencial.
David diz ter sido autuado por não ter pedido o devido parecer ao PNSE, mas garante que isso aconteceu porque o parque não respondeu às solicitações do baldio nesse sentido. “Nós viemos a gerir aquilo que era da obrigação do ICNF e do PNSE quando estavam em co-gestão”, garante.
Relativamente a estes autos, o ICNF diz terem sido cometidas infracções, como a realização de obras, abertura ou alteração de vias e alteração do coberto vegetal. Informa também que um dos três autos foi arquivado e dois se encontram em fase de instrução.
A gestão do baldio não tem dúvidas de que não resultou. Mas o ICNF não vê a questão da mesma forma. O ICNF mostrou-se indisponível para qualquer entrevista de viva voz, mas ofereceu-se para responder por escrito. No que toca às críticas do baldio de Verdelhos ao posicionamento do ICNF enquanto co-gestor, o instituto assegura que “esteve disponível para as diferentes abordagens solicitadas pelos baldios do ponto de vista técnico, elucidando sempre as vantagens ou desvantagens de opções técnicas do ponto de vista de gestão silvícola” e, acrescenta, “existe um permanente contacto entre os técnicos operacionais do ICNF e os representantes dos baldios”.
As queixas do baldio de Verdelhos encontram eco noutros baldios do país. A Federação Nacional de Baldios – Baladi fala numa “clara falta de comunicação” e num " afastamento relativamente às preocupações das comunidades e à gestão dos territórios". Como consequência, dizem, há muitos baldios a abandonar a co-gestão. À Baladi os baldios reportam, sobretudo, dificuldades de comunicação com o ICNF, isto é, pedidos não atendidos, morosidade e até ausência de respostas. “Chegam a demorar dois anos para aprovar instrumentos que são vitais para gerir os territórios, como o são os planos de gestão florestal”, diz Pedro Gomes, director e coordenador técnico da federação.
Esta comunicação que os baldios dizem ser difícil é ainda agravada, na óptica da Baladi, por uma postura do ICNF que vêem mais como fiscalizadora do que como parceira de gestão. “Todos os planos são bons desde que nunca venham a ser executados, mas a gestão, essa, faz-se no terreno com intervenções concretas. Como co-gestor, com responsabilidade atribuída e confiada pelos baldios, o ICNF tem de ir ao encontro das aspirações das comunidades e não das suas próprias aspirações ou de terceiros”. Pedro Gomes pede uma maior abertura de uma instituição que considera “pesada, burocrática e muito resistente à mudança”.
Em Verdelhos, o sentimento é o de que o ICNF/PNSE deixou de ser uma mais-valia e passou a ser um entrave à gestão comunitária e à aplicação das tradições, usos e costumes em que se baseia a gestão de um baldio.
Muito mais do que pinhal
O baldio de Verdelhos é, para a sua comunidade, muito mais do que as plantações de pinheiro-bravo de que se faz madeira para vender. Exemplo disso é o pastoreio. Não é fácil encontrar um pastor a qualquer hora, porque há uma rotina determinada, alheia a quem só conhece a vida de cidade. Nesta reportagem encontrámos apenas um, com o respectivo rebanho de cabras e cães-pastores. Para além deste pastor, 15 outros usufruem, neste momento, do baldio.
Há ainda a prática de uma agricultura familiar, com milho, batata e alfaces, e pomares. E não só: explicam-nos os dois anfitriões de Verdelhos que o baldio usa o centeio, a aveia e outras sementeiras para controlar o crescimento dos matos, reduzindo assim os custos de intervenção. A agricultura é não só uma forma de subsistência, mas também um instrumento de gestã0.
As receitas de tudo isto são aplicadas, entre outras coisas, na própria aldeia. É o caso de um parque infantil, de um campo de futebol, da recuperação de um moinho de água, fornos comunitários e ainda apoio financeiro à junta de freguesia e associações locais.
É uma visão de conjunto a que guia a gestão do baldio. Outras actividades económicas fazem parte do plano dos gestores. A praia fluvial junto à Barragem de Verdelhos é, sem surpresa, um ponto de interesse turístico. A água do rio Beijames corre transparente entre pedregulhos e encostas verdes, o areal é pequeno mas protegido – e há até planos para mesas de piquenique, que serão, claro, um projecto financiado pelas receitas do baldio.
Quanto ao pinhal, há que dizer que a economia do pinheiro-bravo, baseada em pequenas serrações, está em declínio. “Nós tínhamos aqui umas sete ou oito empresas só de madeiras e elas, pouco a pouco, foram-se extinguindo, porque o pinhal foi ardendo. Deixou de haver postos de trabalho”, lamenta David Martins. O baldio de Verdelhos contribui, por seu lado, para reavivar esta economia. Estes 2000 hectares representam não só recursos para a pastorícia e agricultura e investimentos em pequenas infra-estruturas, mas também criam emprego. Embora sendo uma pequena organização, encomenda serviços regularmente, como trabalhos de limpeza de mato e de gestão da rede viária florestal. O que em tempos idos foi, nas palavras do presidente do baldio, “o sustento dos povos” pode bem voltar a sê-lo – pelo menos no caso de Verdelhos.