A primeira bunda brinca na areia da praia. A bunda está empinada, a mulher quase de quatro. O biquíni é do tipo enfiado nas vísceras. Ao lado dela, duas crianças meio desfocadas cavam um buraco. A legenda diz algo sobre a beleza de ter filhos e apreciar as férias com eles. Sair das redes sociais e não se importar com nada.
Mas, vejam bem, a bunda está numa rede social e parece importar-se bastante. A bunda tem aquele filtro Rio de Janeiro. A pose da belíssima bunda parece milimetricamente pensada para ser uma belíssima bunda posada.
Olho a foto e penso: "Meu Deus! #freebunda." Está bem claro que a bunda quer dar uma "bundada" naquela família. A bunda não está de férias, ela está arduamente trabalhada e trabalhando para ser vista e desejada. A bunda quer um "nossasenhora, hein!", e não um "como os seus filhos cresceram!". A bunda não é mãe ou militante ou desconectada ou espiritualizada ou preocupada com o equilíbrio energético yin-yang para o bom funcionamento dos rins. A bunda quer ser apenas bunda e quer que a queiram enquanto bunda. E qual é o problema nisso?
Por que precisamos de tantas desculpas para meter uma bela bunda nas redes sociais? Porque é que a foto de uma bunda precisa de vir acompanhada de mantras, orações, agradecimentos à finada e sábia 'vó Cleidinha, as descobertas ao ler Chimamanda, a importância de degustar os vegetais de corpo presente, a maneira como curei minha depressão simplesmente respirando ou "eu tô mostrando minha bunda para o algoritmo chamar sua atenção para a PEC do quinquénio"?
A segunda bunda joga vólei no clube. No pulo, a banda direita da bunda estremece de leve no ar. A consistência perfeita da musculatura que ora se exercita, ora comete seus crimes sedentários em frente a um prato de carboidratos. É como ver a Mona Lisa no Louvre. A bunda move-se apesar do limite imposto pela imagem estática. A banda direita da bunda encara-nos não importa onde a gente esteja ou para onde a gente olhe. Não precisa de legenda. Está tudo dito ali.
Mas a dona da bunda não concede às suas nádegas a liberdade de apenas ser. Ela precisa de contar como a artrose lombar estava limitando sua vida de empresária. Como era uma pessoa mais triste e stressada. E como agora, ao redescobrir o desporto, ela se sente preparada para os desafios da nova empreitada de sei lá o quê. Termina o texto com algum incentivo meio feminista de hashtag, meio influencer de Instagram. E eu sinto tanta pena daquela bunda. Daquela banda direita perfeita de bunda. Uma bunda normal, com as suas celulites, a sua malemolência despudorada. Aquela bunda poderia ter tudo, mas está presa a uma mulher que precisa de desculpas para ter uma bunda.
A terceira bunda quer apenas dizer "Oi, boa tarde, eu sou a Dona Bunda. E vocês são quem? Ah, sim, muito prazer, Seus Olhos". Ela só quer isso. Mas a dona da bunda gosta de Clarice Lispector (ou aquele texto é do Caio Fernando Abreu?). Ela está numa varanda, e a dona, com a mão no queixo, observa melancólica uma montanha. Mas a bunda, desnuda, redondíssima, com finas estrias prateadas pela claridade, olha para o lado oposto. A mulher encara seus dilemas existenciais, mas a bunda encara quem observa a foto. A bunda grita por socorro.
Exclusivo PÚBLICO/Folha de S.Paulo
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