A herança das invasões francesas: histórias que ainda contamos

As invasões napoleónicas deixaram, em Portugal, marcas na história e influenciaram a cultura e a gastronomia do país.

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De onde surgiu a expressão “ficar a ver navios”? E como é que alguém se lembrou de cozinhar cabras e ovelhas velhas em vinho tinto? As respostas a estas questões confluem num ponto comum: as três invasões francesas, que ocorreram em Portugal entre 1807 e 1811. Herdámos delas, culturalmente, mais do que se imagina. Na linguagem, na gastronomia e até nos vinhos. E os municípios que integram os Itinerários Napoleónicos podem contar-nos essas e outras estórias. Descubra como.

Sair à francesa de armas e bagagens

Na sequência de episódios ocorridos durante as invasões, várias expressões tornaram-se populares e passaram a fazer parte do vocabulário português, perdurando até aos dias de hoje. É o caso de “sair à francesa”, que significa abandonar um local de forma discreta. A frase relaciona-se com a forma como o exército francês, já sem mantimentos, abandonou o local onde havia permanecido durante um mês a assediar as Linhas de Torres.

“Ficar a ver navios” é outra das expressões que deriva destas invasões. A sua origem está no episódio em que o general Junot chegou a Lisboa, a 30 de Novembro de 1807, para ocupar a cidade e capturar a família real portuguesa. Ao longe, ainda viu a esquadra naval a sair do Tejo, rumo ao Brasil, com o Príncipe Regente e a Rainha a bordo.

“À grande e à francesa”, “anda Maria que já abalaram os franceses” e “ir para o maneta” – numa alusão directa ao general Henri Louis Loison, cuja alcunha era “o maneta”, por ter perdido um braço – são outras das frases eternizadas. Assim como “para inglês ver” e “tudo como dantes no quartel de Abrantes”.

Depois da derrota das tropas francesas na Batalha do Vimeiro, na Lourinhã, em 1808, o general Junot e as suas tropas retiraram-se, mas só após assinarem um acordo com os britânicos – a Convenção de Sintra – que lhes permitiu levar consigo tudo o que tinham pilhado, bem como as armas. Nascia aí a expressão “ir de armas e bagagens”.

Da necessidade nasceu a chanfana e a lampantana

A lampantana, prato típico de Mortágua feito com carne de ovelha, e a chanfana, iguaria de carne de cabra característica da Lousã, parecem ter origens semelhantes. Conta-se que as populações envenenaram as águas para impedir que os franceses tivessem o que beber. Tendo ficado também privados desse bem essencial para cozinhar, a população local recorreu ao vinho para confeccionar a carne. E daí nasceram estes dois pratos típicos.

Na Mealhada, contudo, a chanfana tem outra história associada. Diz-se que a política da Terra Queimada, decretada pelo comandante Wellington, levou à destruição das colheitas e de todos os víveres, bem como ao abandono das aldeias. Por isso, cozinhou-se, com vinho, a carne dos animais velhos dos rebanhos que também teriam de ser destruídos.

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Já a “canja à doentes”, outra iguaria que nasceu destas invasões, terá sido criada a partir de um caldo – com carnes e enchidos – feito para dar forças às exaustas tropas britânicas, que começaram a desembarcar, em 1808, na foz do Mondego.

No que aos doces diz respeito, o “bolo dos Generais”, típico do Bombarral, foi o bolo que a anfitriã do moinho que albergou o comando militar de Wellington, na Roliça, confeccionou a pedido do comandante. O mesmo general, durante a passagem pelo mosteiro de Santa Maria do Lorvão, em Penacova, ficou deliciado com os pastéis de Lorvão, confeccionados pelas monjas.

Bebidas que até homenageiam um “velho narigudo” ou que "vieram" dos mortos

A herança das invasões estende-se, também, aos vinhos. Em Mortágua, os descendentes de José Ferreira Tavares – o homem que acolheu em casa o comandante das tropas aliadas, Robert Craufurd, durante a Batalha do Bussaco – criaram uma edição especial de vinho tinto em homenagem ao general.

E a história da Aguardente DOC Lourinhã começa também nesta época. Philippe Joseph, um soldado francês que ficou na região após a Batalha do Vimeiro, ensinou à população local técnicas de destilação de vinho. E há mais: a criação da aguardente de perada conhecida por “Old Nosey” está envolta numa história peculiar. Com os pomares de peras a florescerem nas encostas do Monte do Socorro, um lugar estratégico nas Linhas de Torres Vedras, a bebida deve o nome à alcunha dada ao Duque de Wellington pelas suas tropas, entre as quais era conhecido pelo pronunciado nariz.

Na mesma região, o vinho branco da Ribeira de Maria Afonso ficou para sempre ligado ao gesto que o comandante Wellington, apreciador dos vinhos de pasto de Torres Vedras, teve para com o general Junot quando este foi baleado. Wellington endereçou-lhe uma carta desejando as melhoras, acompanhada por uma garrafa desse vinho. Conta-se também que o mesmo comandante presenteou o rei Jorge III, da Grã-Bretanha, com algumas garrafas de Arinto de Bucelas que ficou conhecido como Lisbon Hock entre os ingleses.

Já na região de Trás-os-Montes, aquando da invasão dos franceses, em 1808, a população enterrou no chão o vinho que se encontrava nas suas adegas para que não fosse destruído. Após a partida das tropas, o vinho foi desenterrado, esperando encontrá-lo estragado. Para surpresa de todos, o vinho estava melhor do que nunca. Ficou conhecido como "o vinho dos mortos".

Histórias que marcam

Perduraram até hoje histórias que marcam cada um dos 13 municípios que integram os Itinerários Napoleónicos. Por exemplo, a expressão “alma até Almeida”, usada como elogio a quem nunca desiste, está associada ao tenente John Beresford, ferido na praça-forte de Ciudad Rodrigo e transportado, depois, para Almeida.

Um tributo à humanidade em tempos de guerra é o episódio que aconteceu em Arruda dos Vinhos. Ao chegar ali, o oficial inglês John Kincaid e o capitão Simmons encontraram uma idosa morta diante do altar da igreja. Era uma mulher que não tinha conseguido fugir com a restante população. Os dois ingleses sepultaram-na na própria igreja, dignificando a sua morte.

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O projecto dos Itinerários Napoleónicos conta com a participação de 13 municípios que procuram valorizar e salvaguardar a herança e as marcas deixadas pelas Invasões Napoleónicas.

O “cemitério dos ingleses”, em Elvas, foi construído para sepultar os britânicos que perderam a vida durante a Guerra Peninsular e que, por serem anglicanos, não podiam ser enterrados nas igrejas da cidade. Em Sobral de Monte Agraço, existe uma rua que é, ainda hoje, conhecida por rua das Casas Queimadas, em memória da destruição causada pelas tropas de Junot, em 1810, na ocupação desta vila, que durou até à retirada dos franceses da frente das Linhas de Torres.

Jacinto Correia, homem do povo, ficou lembrado em Mafra como um símbolo de resistência e coragem contra o exército invasor. Isto porque matou dois soldados franceses com recurso a uma foice, quando os mesmos o tentaram roubar, e pela frase que proferiu durante o seu julgamento: "Se todos os portugueses fossem como eu, não restaria um só invasor".

Também a memória colectiva de Vila Franca de Xira mantém vivo, até hoje, um episódio protagonizado pelas tropas espanholas. Aquando da retirada dos franceses, consta que as ruas estavam “atulhadas de imundice”, fruto da ocupação e dos combates. Restou aos soldados espanhóis recorrer a um método inusitado: usar os ramos mais frondosos dos pomares de frutos da vila vizinha de Povos para varrer as ruas.

Para os apreciadores gastronómicos ou apreciadores de História, os Itinerários Napoleónicos têm surpresas incontáveis. Das dezenas de pontos de interesse aos Centros de Interpretação, as Invasões Francesas são retratadas ao longo dos 13 municípios por onde passaram. Mas antes de programar a sua viagem consulte a agenda nacional, onde encontra toda a oferta cultural dos Itinerários Napoleónicos.

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