Calor: as vozes do Alentejo de quem trabalha no campo com o “hálito do inferno”

O calor extremo no Alentejo no Verão não é novidade, mas agora as temperaturas altas prolongam-se meses após meses. Muda-se o tempo, mudam-se os hábitos e muito do trabalho pára entre as 14h e as 17h.

RG Rui gaudêncio - 31 Julho 2024 - Trabalho sobre como é trabalhar sob um sol inclemente no Alentejo. Beja. Público
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RG Rui gaudêncio - 31 Julho 2024 - Trabalho sobre como é trabalhar sob um sol inclemente no Alentejo. Trabalho numa produção de melão. Beja. Público
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RG Rui gaudêncio - 31 Julho 2024 - Trabalho sobre como é trabalhar sob um sol inclemente no Alentejo. Trabalho numa produção de melão. Beja. Público
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RG Rui gaudêncio - 31 Julho 2024 - Trabalho sobre como é trabalhar sob um sol inclemente no Alentejo. Beja. Público
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Os rebanhos de ovelhas apertam-se num círculo quase perfeito debaixo da sombra de sobreiros e azinheiras, nas horas de calor intenso, sem um balido ou mexidas no restolho. O silêncio é quase absoluto. Era assim no passado, é assim no presente.

Episódios de calor extremo no Alentejo não são novidade, mas algo mudou. O escritor alentejano Fialho de Almeida relatava em os Ceifeiros com uma prosa que realçava o quotidiano dos que trabalhavam no campo: “[O] hálito do inferno, (…) ou vento levante, (…) todo abrasado das areias africanas, veio sobre esses grandes vales argilosos do distrito de Beja.” Eram assim os meses de Junho em que terminologia não recorria às “ondas de calor”, mas já aí as temperaturas máximas superavam os 45 graus Celsius.

Tal como nos dias de hoje, no final do século XIX, Fialho de Almeida deixou vincado um quadro dorido da “horrível” faina dos campos sob “um céu de chumbo” que afastava as pessoas da realidade: “(…) Rareia o ar, a aragem matinal cessa de todo, os cães arquejam de língua caída, as cavalgaduras cessam de rilhar; (…), o cérebro zumbe nos alucinantes delírios da insolação!”

Hoje, José Damião Félix, produtor pecuário em regime extensivo, na sua exploração em Vales Mortos/Serpa, compara o tempo retratado por Fialho de Almeida com a realidade que enfrenta no manejo dos animais. “Antes as ondas de calor apareciam e concentravam-se em Junho, agora prolongam-se até Outubro, o que faz toda a diferença e é demonstrativo de como as alterações climáticas vieram para ficar. Estamos confrontados com o arrastamento das altas temperaturas”, resume ao PÚBLICO.

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José Damião Félix na sua propriedade em Vales Mortos, Serpa. Rui Gaudêncio

O bafo do inferno dura mais tempo. Damião Félix traz no corpo as extensas marcas bem visíveis de transpiração na roupa de trabalho. O ponteiro do relógio estava a 6 minutos das 17h.

O agricultor reconhece que é cada vez mais complicado assegurar a alimentação dos animais e a gestão da água de que necessitam tende a escassear com mais frequência. “Felizmente este ano tivemos uma Primavera com muita chuva e uma temperatura amena, que nos tirou a corda da garganta e evitou que tivéssemos de alimentar os animais a forragens e a rações [à mão], como se diz no Alentejo.

Por força das secas sucessivas e da falta de pastos registou-se nos últimos dois anos “uma acentuada redução dos efectivos que tiveram de ser vendidos para abate, por incapacidade dos produtores em garantir a alimentação dos animais”, conta Damião Félix. Neste momento “assiste-se a um reforço de gado nos aparcamentos”, acentua ainda.

Trabalho administrativo à tarde

“[Enfrentar as ondas de calor] é um momento duro, mas tem de ser superado da melhor forma que sabemos e podemos.” Às 7h o agricultor já está a pé. E a sua escala de trabalho é estruturada de forma a evitar o calor mais intenso. “As tarefas de campo são matinais e da parte da tarde depois das 12h30 dedico-me às funções administrativas. Mas tornou-se frequente ter de continuar no campo para tratar dos animais, suportando o calorão.”

Mais a norte, na freguesia de Beringel, Beja, Nabor Reis, produtor de hortícolas, acelerava num monta-cargas, descarregando paletes que iriam receber melões. Passavam poucos minutos das 14h. Como é ter de trabalhar debaixo deste sol tão quente? O agricultor ri-se e não resiste a uma resposta pronta com um toque de ironia: “Ganha-se pouco, mas é divertido.”

Para fugir ao calor, o período mais intenso de trabalho decorre apenas entre as 6h30 e as 14h30. “Quem anda neste dia-a-dia encara as elevadas temperaturas como algo que faz parte do trabalho agrícola no Alentejo. Estamos habituados a isto, quando o termómetro vai até aos 35 graus.” Porém, quando chega aos 42, 43, 44 e até mais, “aí é que o trabalho é duro”. Mas, diz o produtor sem hesitação, “tem de ser feito” para colocar os alimentos nas prateleiras dos supermercados.

Nabor convida o PÚBLICO a acompanhar os trabalhos de recolha de melão, quando já passa das 14h30. Encolhe os ombros, quando olha para o relógio: “os carros têm de ser feitos”, ou seja, a tarefa só acaba quando o camião estiver completamente carregado. “Hoje, como ontem e outros dias, temos de continuar por mais meia hora, uma hora ou o tempo que seja preciso.” Nem sempre há possibilidade de fugir às horas de maior calor.

O extenso meloal regado pela água de Alqueva ocupa 110 hectares e dali saem 100 toneladas diárias, e o agricultor conta que já cultivou arroz, tomate e agora melão e melancia. Diz que a produção já está toda vendida.

Mecanizar as tarefas agrícolas ajuda muito, mas não afasta o calor, embora a temperatura do ar naquele dia estivesse “uma maravilha” para o agricultor. A terra que se pisa está húmida e coberta pela rama verde rastejante e densa das plantas de melão e transmite aos trabalhadores do campo uma sensação de frescura quando corre uma brisa.

Nabor Reis, proprietário da produção de melão. Rui Gaudêncio
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Nabor Reis, proprietário da produção de melão. Rui Gaudêncio

Mas em terrenos de restolho onde se fez a colheita de forragens e fenos, aí o cenário muda de figura, quando se atingem os 42 ou 44 graus Celsius. “É insuportável”, comenta o agricultor, enquanto transmite um recado a Maria, a filha de 16 anos, que conduz o tractor com um atrelado, onde eram descarregados os melões. Perguntamos a Maria Reis se a sua participação nas tarefas agrícolas é uma opção ou uma exigência familiar. “É uma opção. Estou a ajudar o meu pai para continuar a exploração no futuro.”

A jovem salta da cama pelas 5h da manhã para tratar de si e só regressa a casa depois das 14h30 para fugir ao calor mais forte. [Na semana passada] apanhámos uma temperatura de 43 graus”, conta. Na verdade, o trabalho só termina depois de acabarmos o camião”, observa.

Pese embora o conforto de estar ao volante de um tractor com ar condicionado e sistema GPS que facilita a condução, a jovem reconhece: “É duro trabalhar no campo e com este calor, não tanto para mim, mas para eles.” Eles? Com um movimento da cabeça, Maria aponta para os trabalhadores imigrantes de várias nacionalidades (africanos, timorenses, romenos, um brasileiro) que trabalham na exploração. Recolhem os melões e põem-nos num tapete rolante que os transporta para as paletes onde dois trabalhadores os acondicionam, acautelando o risco de perdas pela trepidação durante a viagem até ao Algarve.

Por incrível que pareça, até aos 35 graus Celsius ainda é bom tempo para os agricultores. Mas quando o “hálito do inferno” chega aos 42 graus “é duro, muito duro” trabalhar no campo. O suplício é maior ainda para os mais idosos que procuram as zonas frescas nos aglomerados populacionais para não descompensarem.

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Maria Reis Rui Gaudêncio

De que serve ter ar condicionado sem dinheiro para pagar a conta?

Se as temperaturas máximas são desconfortáveis durante o dia, as mínimas alimentam a insónia das madrugadas trazidas pelas sucessivas ondas de calor. Não é suportável tentar o repouso reparador quando no termómetro o filamento de mercúrio ou na meteorologia online o valor ascende aos 25 graus Celsius às zero horas.

Voltemo-nos para a cidade. Nas manhãs dos últimos dias as consequências das noites mal dormidas foram objecto dos desabafos dos mais idosos à sombra dos toldos que passaram a cobrir as esplanadas dos cafés e restaurantes de Beja, sempre esperançados que uma brisa leve acaricie os corpos já afogueados ao início da manhã.

Custódia Correia, 74 anos, trabalhou no campo “um ror de anos”, foi emigrante na Suíça e recorria ao abanico quando o PÚBLICO lhe perguntou como superava as noites e os dias quando a temperatura tinha batido nos 42 graus Celsius. “Olhe! Espero que passe. O que é que nós podemos fazer!?”

Já não dá para ficar em casa, dizem. As novas construções em alvenaria concentram o calor nas paredes e tornam as noites e os dias “um martírio” queixa-se a idosa, apontando para si própria. “Estou muito gorda e o coração não aguenta tantos maus tratos. E com este calor a tensão vem por aí abaixo e a cabeça anda avariada e tenho medo de descompensar”, admite.

Na ciclovia que percorre a periferia de Beja, Orlando Rolo Proença, 81 anos, faz a sua caminhada diária acompanhado da esposa. Em Junho ficou satisfeito depois de ter adquirido um aparelho de ar condicionado. [Nessa altura, dormia] mais horas sem ter de me levantar para me sentar na varanda a apanhar fresco.” Mas, no final de Julho, Rolo Proença já não estava tão animado: “Tive de desligar o aparelho. A minha reforma não dá para pagar a electricidade que gasta.”

O impacto das ondas de calor na saúde dos que trabalham no campo e da população em geral não mereceu até agora qualquer medida especial. O senso comum tem por adquirido que os episódios de temperaturas elevadas acima dos 35 graus só causam desconforto físico, mas Luís Duarte, cardiologista na Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (ULSBA), disse ao PÚBLICO que a temperatura do ar para além dos valores considerados normais “tem uma larguíssima importância nos doentes cardíacos”.

As pessoas tendem a perder mais líquidos do que o habitual e observa-se o agravamento dos estados cardíacos nos mais idosos que respondem muito mal às consequências do tempo quente. Nestas circunstâncias, surgem picos de tensão arterial baixa. Os efeitos também se projectam a nível renal e surgem as arritmias nos batimentos cardíacos.

Luís Duarte confirma que os serviços de urgência “são mais procurados”, quando as ondas de calor se prolongam no tempo. É quando as pessoas se queixam de baixa de tensão, problemas no fígado ou rins, sendo aconselhadas a beber mais líquidos do que o habitual, e a medicação que é prescrita em função de temperaturas ambiente mais confortáveis “é revista”.

O clínico salientou outro dado que pode vir a ter consequências graves: pessoas desidratadas podem estar sujeitas a falência renal e episódios de fibrilação auricular. E nos idosos as ondas de calor “torna-os mais sujeitas a confusão mental”.

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Ana Matos Pires, médica psiquiatra e directora do Serviço de Psiquiatria da ULSBA, também vincou ao PÚBLICO a importância de a população tomar consciência do impacto das temperaturas extremas na saúde mental. As ondas de calor tornaram-se mais intensas, mais frequentes e mais prolongadas.

Além da confusão mental, as variações meteorológicas extremas podem potenciar “alucinações, transtorno bipolar e risco de episódios maníacos”. O risco de desidratação é muito alto e as suas consequências revelam-se nas “alterações renais, quando não se mandam para fora as substâncias tóxicas internas”, observa a psiquiatra.

Ao contrário do que se verifica no Inverno, quando os centros de saúde registam uma maior procura, a época estival concentra menor número de pessoas, mas verificam-se mais atrasos no atendimento, devido às férias do pessoal médico.

No entanto, Mafalda Moreira, fisioterapeuta em Beja, consegue encontrar um lado positivo no impacto do tempo quente na saúde e bem-estar da população: durante o período estival a procura dos serviços que presta “é menor”, ao contrário do que acontece no Inverno, quando se torna mais difícil corresponder às solicitações, sobretudo das pessoas mais idosas. Mas será mesmo um lado positivo? Atrás da menor procura podem estar outros problemas associados ou não ao calor. Talvez apenas seja altura para tirar férias de tudo, até de alguns tratamentos. Certo é que é difícil acreditar que o “hálito do inferno” traga mais saúde a quem quer que seja.