A (i)literacia em ciência: profissionais de relevo mas com CV martelados

A integridade na ciência tem de ser cultivada nas universidades enquanto expoente máximo do conhecimento e iniciada desde os primeiros anos de formação académica.

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A agência de investigação espanhola suspendeu a colaboração com o reitor da Universidade de Salamanca, Juan Manuel Corchado, pendendo sobre ele críticas da parte de sociedades científicas, políticos e professores. O reitor e especialista em inteligência artificial terá sobrevalorizado as autocitações (só num trabalho, 227 vezes) em detrimento da discussão entre pares.

Mas qual é o drama das autocitações? É prática nova na ciência? Infelizmente, não há novidade.

A má conduta científica (uma forma mais amenizada e com menos retórica do que fraude científica) está no auge e com a covid-19 bateu no fundo, vivendo ainda hoje a avalanche de retractions (retirada do valor científico de um artigo) compiladas na Retraction Watch Database. Infelizmente será a ponta do icebergue.

O que nos deve preocupar é que são poucos aqueles que conseguem interpretar a própria ciência, o que significa o conteúdo de um curriculum académico-científico ou de um artigo científico. É, portanto, necessário, ensinar uma boa dose de ciência, nomeadamente de bibliometria e de integridade científica. Caso contrário, valorizam-se as métricas – que são muitas vezes manipuladas.

A bibliometria é uma área de estudo que aplica métodos quantitativos e estatísticos para analisar publicações científicas. Entre as plataformas mais conceituadas estão a Web of Science e a Scopus.

Por outro lado, a integridade na ciência tem de ser cultivada nas universidades enquanto expoente máximo do conhecimento e iniciada desde os primeiros anos de formação académica. Esta refere-se aos princípios éticos e padrões de conduta que orientam a prática científica e é largamente influenciada pelo ambiente ensino-aprendizagem-avaliação. Mantê-la é fundamental para assegurar os valores da ciência como a honestidade, confiabilidade, respeito e a responsabilidade.

É com pesar que vemos que hoje é fácil construir um curriculum científico – e muitas empresas já se dedicam a prestar esse serviço, como são o caso das revistas e os congressos predadores. Portanto, é fácil atirar areia para os olhos dos avaliadores com a bibliometria, conseguindo-se cargos de relevo. E mais insólito é que já se pode comprar autorias em artigos em áreas científicas para as quais não se tem qualquer relação de conhecimento. É pagar e consegue-se. Índices como o Fator de Impacto de revistas científicas e o Índice H, que é largamente inflacionado pelas autocitações, são exemplos de métricas que não refletem tudo.

Falta literacia para perceber que estamos perante uma produção científica intencionalmente fabricada, falsificada ou plagiada (conhecida pela sigla FFP em inglês).

Mas podemos fugir da bibliometria? Não podemos! Se, por um lado, existe uma enorme pressure to publish, por outro lado, quem avalia o ensino superior e as unidades de investigação pouco sabe do que significam as entrelinhas. Felizmente muitos investigadores fazem ciência pela boa ciência, livres de pressões. Mas são geradas injustiças quando se comparam os currículos baseados em métricas. “Nem tudo o que pode ser contado conta, e nem tudo o que conta pode ser contado” – frase atribuída a Albert Einstein.

Mas devemos deitar fora a bibliometria? Não, porque fornece ferramentas valiosas para medir e avaliar a qualidade da produção científica, enquanto a integridade assegura que essa produção seja confiável e ética. Juntos, esses elementos ajudam a promover uma ciência robusta, transparente e respeitável.

Tem de ser combatida a cultura do publish or perish (isto é, publicar ou perecer) intrínseca à pressão intensa sobre os investigadores, que os leva a evoluir para os caminhos da “ciência rápida”, com consequente impacto significativo na forma como é conduzida, avaliada e percebida. Atribuir a menores de idade a autoria de artigos científicos é afundar a verdade científica, mas é já a estratégia de alguns familiares para que os seus descendentes tenham maior sucesso na hora de ingressarem numa universidade ou mercado profissional.

O segredo é ser genuíno e honesto no que se descobre e escreve.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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