Rebeca e Alice roubaram o dia a Simone, mas não lhe roubaram a redenção

A brasileira ficou com o ouro no solo e a italiana venceu na trave. Quanto à norte-americana, foi menos que perfeita ficou com uma prata para juntar aos três títulos em Paris.

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O pódio do solo; Rebeca Andrade ao meio, Simone Biles e Jordan Chiles a prestar vassalagem Hannah McKay / REUTERS
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É possível que tenhamos assistido ao último dia olímpico de Simone Biles. Já teve muitos, com muitos títulos e medalhas de outra cor, sempre a aperfeiçoar a perfeição cada vez que sobe ao praticável para fazer piruetas que mais ninguém faz, ou que se eleva no salto, ou procura o equilíbrio na trave, ou navega nas paralelas assimétricas. Em Paris, o último dia da ginástica artística era para ser dela e só dela – e, de uma certa forma foi. Mas não foi um dia de perfeição para Simone Biles, foi um dia de humanidade. E um dia de glória para Rebeca Andrade, a maravilhosa ginasta brasileira, e Alice D’Amato, a italiana que teve o mérito de não cair.

O último dia da ginástica artística feminina tinha duas finais, a trave e o solo. A norte-americana era a favorita indiscutível no solo (a sua especialidade) e uma das candidatas na trave – a única medalha individual que conquistara em Tóquio, um bronze. Quando a chamaram para o pavilhão, teve a ovação esperada e o seu embate com o público foi igual ao que tem sido em Paris, menos sorridente, mais fechada, mais profissionalismo e menos deslumbramento.

Uma a uma, as ginastas foram subindo à trave e metade delas caíram. Uma das que se aguentou foi a italiana Alicia D’Amato, sem ter a dificuldade mais elevada (5.8), mas com uma execução quase sem falhas (8,566). Pouco depois, foi Simone a subir para a trave. Dificuldade no alto (6.2), mas execução deficiente – alguns abanões sem cair e, depois, uma queda. Terminou o exercício e a nota levou tempo a sair, mais tempo do que é habitual – até o público que aplaudia de forma compassada se fartou de esperar.

Quando saiu, 13.100, não chegava para apanhar D’Amato (14,366), nem para chegar ao pódio – que seria composto pela chinesa Yaqin Zhou (14.100) e por outra italiana, Manila Esposito (14.000). Viu-se a desilusão na cara de Simone Biles, que esperaria, no mínimo, uma medalha. Mas ainda havia mais para conquistar naquela tarde.

Queda no aquecimento

Seguiu-se uma pausa para a ginástica masculina (foram duas finais) e, cerca de uma hora depois, as mulheres voltaram a ocupar a ribalta para a final do solo. Aqui, pensava-se, Simone Biles era invencível e ninguém lhe poderia chegar – porque ela coloca a fasquia de dificuldade em patamares que as adversárias nunca conseguem igualar. Depois, a execução, que costuma ser perfeita, trata do resto.

Quando a norte-americana subiu para o aquecimento, numa das suas corridas, caiu de costas, de forma aparatosa e ainda acertou nas pernas do treinador. Não saiu a coxear, mas foi, de imediato assistida na perna esquerda. Não era um bom sinal para a tarefa difícil que tinha pela frente, a de superar Rebeca Andrade, que liderava a final desde que executara o seu exercício sem falhas e sem meter o pé fora do praticável – teve 14.133 de nota.

A norte-americana foi a sétima a entrar em acção e o seu plano era, de longe, o mais difícil de todos (6.900). Mas a perfeição voltou a ficar de fora – parecia ter azeite nos pés. Por duas vezes foi para lá do quadrado e foi fortemente penalizada por isso. Desta vez, a nota levou menos tempo a sair (14,133) e Simone não pareceu surpreendida. Rebeca campeã pela primeira vez em Paris, segurando um ouro que foi a sua quarta medalha nestes Jogos (prata no all-around e no salto, bronze em equipas) e a sua sexta medalha olímpica (já tinha sido ouro no salto e prata no all-around em Tóquio).

Simone ficava com a prata numa especialidade que costuma dominar (título olímpico em 2016 e seis títulos mundiais), o terceiro lugar ainda teve um “twist” final Jordan Chiles, a outra norte-americana, pediu revisão da nota de dificuldade, os juízes concordaram e ela saltou de quinto para terceiro.

No final, a festa foi totalmente brasileira e até as norte-americanas prestaram vassalagem a Rebeca no pódio. Já com as medalhas ao pescoço, Chiles e Biles desceram à terra para saudar a nova rainha brasileira da ginástica. “Ela é uma rainha”, diria mais tarde Simone Biles na conferência de imprensa sobre a brasileira, acrescentando que este não era só um gesto de veneração desportiva – era por este ser um pódio com três mulheres negras.

"Finalmente acabou"

E era assim que acabava o último dia de Simone Biles em Paris, “apenas” com mais uma prata, ela que já tinha ficado com três medalhas de ouro (all-around, salto e equipas), elevando para 11 o seu número de pódios olímpicos. De “menina do Rio” em 2016, à “medalha da coragem” em 2021, à redenção nos seus próprios termos em 2024, tudo a acrescentar à sua lenda e a cimentar um estatuto que dificilmente irá perder nas próximas décadas, o de melhor ginasta de todos os tempos.

Como sempre acontece nestas coisas, a sala de conferências de imprensa encheu para ouvir Simone Biles e mais ninguém – a moderadora bem pedia perguntas para as duas medalhadas italianas, que lá apareceram mais para o final. Sentia-se alguma saturação em Biles por toda a atenção que teve durante estes dias e ela própria verbalizou esse estado de espírito. “Não foi a melhor das minhas exibições, que ganhou as medalhas, ganhou. Na ginástica nunca se sabe. Não estou muito aborrecida com o que fiz nos Jogos Olímpicos. Estou feliz, orgulhosa e entusiasmada porque isto finalmente acabou.”

Apesar do último dia sem ouro, Simone cumpriu na perfeição a narrativa do “comeback”, do regresso à luz e da batalha ganha aos demónios interiores – e são muitos. Em Tóquio, pagou o preço da saturação competitiva e abdicou de quase todas as finais porque tinha perdido a noção do espaço e o controlo sobre o próprio corpo. “Consegui mais do que alguma vez sonhei e não apenas nestes Jogos. Há alguns anos não pensava que fosse voltar aos Jogos Olímpicos, mas quatro medalhas? Estou muito orgulhosa de mim própria.”

Se este foi o seu último dia nos Jogos Olímpicos? Desta vez, não lhe fizeram a pergunta, mas ela já tinha deixado tudo em aberto, apesar do cansaço e da saturação. Até 2028, em Los Angeles, há muito tempo para a ginasta de 27 anos descansar e para tomar uma decisão. “Vai ser em casa e nunca se sabe”, disse após uma das finais que ganhou. “Mas eu estou a ficar muito velha.”

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