Entre a ria e o Atlântico, é na ilha do Farol que as águas mais aqueceram em 30 anos

A nível global, a temperatura da água do mar continua a bater recordes. Em Portugal, é na praia do Farol, na ilha piscatória da Culatra, que as águas mais aqueceram face à média das últimas décadas.

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Praia do Farol, na ilha da Culatra, em 2022 Duarte Drago
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Marcolino Mestre, mestre de nome e mestre de embarcações, conhece o mar ao largo de Faro melhor do que a si mesmo. É o próprio que o diz, enquanto espera por mais um grupo de clientes para levar do porto fluvial de Olhão às ilhas-barreira que separam a ria Formosa do Atlântico: Deserta, Armona e Culatra, onde mora. São centenas os turistas que todos os dias atravessam a ria à procura da melhor praia do Algarve e das águas mais quentes do país.

O pescador de 58 anos também conhece bem as rotas de migração das espécies que passam ao largo da costa algarvia. Pela altura em que falou com o PÚBLICO, na segunda quinzena de Julho, já a costa estava cheia de listrados, ou bonitos (da família dos atuns) e dourados, comenta. A seguir, caso a água se mantivesse quente, chegariam os marlins brancos, os sarrajões, os marlins pretos.

A nível mundial, a temperatura da água do mar à superfície continua a bater recordes, depois de um ano de 2023 que viu máximos de temperatura. O Atlântico Norte teve o Verão mais quente desde que há registo e a tendência manteve-se para 2024: o primeiro semestre deste ano conseguiu ser mais quente do que os primeiros seis meses do ano anterior.

Apanha de bivalves na ria Formosa, em 2021. Daniel Rocha/Arquivo
Produção e apanha de ostras na ilha da Culatra, em 2021. Daniel Rocha/Arquivo
Maioria dos habitantes da Culatra continua a dedicar-se à pesca ou produção de bivalves. Rui Gaudêncio/Arquivo
Praia do Farol, na ilha da Culatra, em 2022. Duarte Drago/Arquivo
Marcolino Mestre, de 58 anos, trabalha no mar desde a adolescência. DR
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Apanha de bivalves na ria Formosa, em 2021. Daniel Rocha/Arquivo

Há mais de 40 anos a trabalhar no mar do sotavento algarvio, Marcolino Mestre confirma ter notado uma subida da temperatura da água. Não é só o corpo que a sente, mas as sondas dos barcos que medem a temperatura à superfície. O valor mais alto de que se lembra de registar foi em 2022, quando a água atingiu os 27ºC na costa sul da ilha da Culatra (concelho de Faro).

"É um fenómeno puramente local"

A caminho da Culatra, numa viagem de 30 minutos pelas águas da ria Formosa, vai crescendo no horizonte o farol do cabo de Santa Maria, que dá à ilha o nome pelo qual é também conhecida: ilha do Farol. Se olharmos para toda a costa continental portuguesa, é precisamente na praia do Farol que a temperatura da água mais subiu em relação à média dos últimos 30 anos, de acordo com dados do serviço europeu de Monitorização do Meio Marinho do Copérnico, recolhidos e analisados pelo PÚBLICO. No último mês, esteve cerca de três graus Celsius acima do valor médio da temperatura registado entre 1993 e 2021.

Segundo Paulo Relvas, investigador do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve e doutorado em Oceanografia Física, o aumento da temperatura junto à ilha do Farol “é um fenómeno puramente local”, influenciado pelo sapal da ria Formosa. Quando a maré enche, explica, inunda o sapal e aquece; na maré vazia, a água recua e o calor é transportado para o Atlântico.

“Não tem que ver com nenhuma alteração de fundo, anomalias destas sempre ocorreram”, sublinha. “O problema é se essas anomalias começam a ser muito constantes. Aí, então, será sinal de alarme.”

Para quem trabalha junto ao areal e faz visitas diárias à praia, no final de turnos tórridos, o mar parece gelado, mesmo tendo atingido os 24ºC em Julho. É essa a sensação de Carlos, empregado de mesa num dos restaurantes da ilha, ou Pablo, funcionário de um concessionário de praia, ambos pouco apreciadores de banhos de água fria.

A Associação de Moradores da Ilha do Farol estima que, ao longo do ano, vivam entre 160 e 180 pessoas no seu núcleo. Em conjunto com as outras duas povoações da ilha — Culatra, que lhe dá o nome, e Hangares —, serão, no total, perto de mil habitantes. A maioria continua a dedicar-se à pesca ou produção de bivalves na ria, outros passaram a servir o turismo.

Diogo Mendonça é nadador-salvador e um dos habitantes da ilha do Farol, sobrinho e neto de faroleiros. Habituou-se a este mar desde que nasceu, há 19 anos, e não estranha a temperatura. Agradece apenas que este ano as alforrecas e medusas não tenham invadido a praia, como aconteceu em 2023.

Temperatura média do mar a nível global bateu recordes por 15 meses consecutivos

Nessa terça-feira de Julho, o vento soprava de sudeste, da zona do golfo de Cádis, trazendo limos e maior ondulação para a costa algarvia, mas também água mais quente, a rondar os 24 graus à superfície. Para os mais cautelosos, o dia de praia no Farol fez-se a seco, sem arriscar enfrentar a força das ondas e dando algum descanso a Diogo.

A nível global, a temperatura média da superfície do mar em Junho foi a mais elevada desde que há registo para este mês, com uma média de 20,85 graus Celsius. Foi o 15.º mês consecutivo em que o valor médio de temperatura estabeleceu um recorde para o respectivo mês do ano.

Embora esta sequência tenha sido interrompida em Julho (ficando apenas atrás do valor de 2023), o Copérnico alerta para a crescente frequência com que os recordes têm sido batidos, assinalando uma tendência “inevitável” caso não sejam adoptadas medidas para a redução dos gases com efeito de estufa.

Em terra, com outras preocupações além da temperatura do mar, Sebastião Vieira parecia andar atarefado. Segurava uma caixa à prova de água, transparente, usada para proteger uma câmara GoPro: “É com isto que eu e o meu pai gravamos os nossos mergulhos!”

Farol do Cabo de Santa Maria, na ilha da Culatra. Duarte Drago/Arquivo
Simão Vieira, faroleiro e praticante de caça submarina, e o filho, Sebastião. DR
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Farol do Cabo de Santa Maria, na ilha da Culatra. Duarte Drago/Arquivo

O pai é o faroleiro da ilha do Farol, pescador e mergulhador nos tempos livres. “Gosto de mergulhar porque parece que sou bom e quero ser melhor. E tenho uma sensação de coisa viva, ao ver os peixes e as algas”, tenta explicar Sebastião, de 12 anos. Segundo o pai, Simão Vieira, aprendeu a nadar muito cedo, aos cinco anos. “Ao Sebastião só lhe faltam as guelras. Gosta muito da água, já gosta mais do que eu.”

Simão, de 40 anos, é faroleiro do farol do cabo de Santa Maria há quase uma década. “As pessoas pensam que o faroleiro é o homem que vai acender e apagar a luz — isso é a única coisa que a gente não faz”, resume. Antes disso, era fuzileiro da Marinha Portuguesa.

Em nove anos na ilha, não nota grande diferença na temperatura da água, mas diz que o peixe junto à costa é cada vez menos. “Não só devido ao aquecimento da água, mas devido à pesca excessiva”, em especial a pesca com redes, aponta. As douradas e os polvos, exemplifica, são duas das espécies que se vão tornando raras. Na ria, os cavalos-marinhos também parecem ter desaparecido.

Talvez a ligação do faroleiro ao mar seja mais antiga do que ele mesmo, admite. “Talvez por ser algarvio. A gente da minha família tinha uma casa na ria Formosa. Já o meu bisavô era pescador, o meu pai mergulhou muitos anos, o meu tio ainda tem um viveiro de amêijoas na ria”, conta. “Quando uma pessoa nasce e cresce aqui, é difícil não gostar do mar” — sem olhar a temperaturas.