Final da manhã na praia de Moledo, em Caminha, Viana do Castelo. É dia de céu limpo, com vista perfeita para o monte de Santa Tecla, já na margem espanhola da foz do Minho. Contrariando a fama, não sopra nortada, e a leve brisa que se sente vem do mar. Está calor, mas poucos se aventuram na água, apesar da bandeira verde que descansa na haste. Não surpreende, considerando que a água do mar nas praias de Viana do Castelo é consistentemente das praias mais frias do país – e até andou mais fria que o normal.
O planeta assiste há mais de um ano a recordes sucessivos de temperatura, tanto no ar como nos oceanos. O ano de 2023 foi o ano mais quente desde que há registo, 1,49 graus acima do que era antes da Revolução Industrial, e as águas do mar não escaparam. Neste último capítulo, Portugal continental foi poupado – embora 2023 tenha estado quase sempre acima do valor médio de temperatura registado entre 1993 e 2021, o ano esteve longe de ser o mais quente no que diz respeito à temperatura da superfície da água do mar em Portugal.
O ano de 2024 mantém as tendências nos oceanos: os registos globais batem os valores máximos estabelecidos em 2023, mas a costa portuguesa escapa quase toda à vaga. De acordo com dados do Serviço de Monitorização do Meio Marinho do Copérnico (CMEMS) recolhidos e analisados pelo PÚBLICO, a maior parte da costa tem registado valores de temperatura normais para a altura do ano. As excepções, em particular no primeiro mês de Verão, foram as praias mais a norte e mais a sul.
As temperaturas mais acima da média têm-se verificado em praias do Algarve, concretamente a este do Parque Natural da Ria Formosa. No Norte do país, a temperatura da água do mar esteve ainda mais fria do que aquilo que tem sido regra nos últimos 30 anos. Voltemos à praia de Moledo.
Água mais fria? Sim, não, talvez
É um dia calmo de trabalho para Luís Varela e José Mina, nadadores-salvadores em Moledo-Norte há três épocas balneares, mas com vários anos de praia nesta zona: José Mina é de Caminha e Luís Varela passa temporadas em Moledo desde pequeno, numa casa da família. Sublinhando que as águas que vigiam são sempre “muito frias”, admitem que a temperatura no primeiro mês da época balnear tenha estado ainda mais baixa do que o normal.
De acordo com os dados do programa europeu CMEMS, a água do mar na costa do concelho de Caminha esteve, durante o mês de Junho e boa parte de Julho, entre dois e três graus Celsius abaixo do valor médio da temperatura registado entre 1993 e 2021. Essa anomalia de temperatura verificava-se, ainda que em menor escala, em todas as praias até Aveiro.
Embora os dados recolhidos indiquem que o mar nas praias mais a norte de Portugal esteve abaixo do expectável no arranque do Verão, as sensações não são as mesmas entre aqueles que frequentam as estâncias balneares da zona. Marco Sá, de 38 anos, é instrutor de surf na praia de Moledo desde 2021. O seu testemunho contraria os registos, dizendo sentir a água mais quente do que nos anos anteriores.
Não há uma forma objectiva de medir o que diferentes pessoas sentem a mergulhar ou molhar os pés. Entre os veraneantes e locais que o PÚBLICO foi ouvindo nas praias de Moledo, o espectro de resposta variou entre água mais fria do que o habitual, normal para a altura do ano ou mais quente do que o costume – isto sem mencionar quem apenas disse que a água nestas praias é sempre fria.
A ideia de que Junho e Julho tiveram temperaturas da água do mar anormalmente frias é também mencionada por quem faz do mar trabalho. Um pouco a norte do Moledo, já em Caminha, um pescador comenta com o PÚBLICO que o mar tinha estado mais frio, justificando isso com uma Primavera mais cinzenta e chuvosa que fez mais água fria do rio Minho desaguar na foz.
Isabel Iglesias, investigadora do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Ciimar) na área da oceanografia física, realça a influência das águas dos rios na temperatura do mar das praias circundantes, mas é cautelosa quanto à justificação do pescador. Nos meses da Primavera, mesmo que em anos chuvosos, as águas fluviais tendem a já ser mais quentes do que o mar em que vão desaguar.
O afloramento costeiro e as “variabilidades”
O que pode, afinal, justificar anomalias negativas de mais de dois graus Celsius na temperatura das águas costeiras? A resposta de Isabel Iglesias toca de imediato num termo já conhecido para quem conhece as dinâmicas da costa ocidental portuguesa: o afloramento costeiro, ou upwelling.
Este fenómeno oceanográfico caracteriza-se pela deslocação das águas superficiais provocada pelo vento – no caso da costa ocidental de Portugal continental, pela movimentação de massas de ar vindas do norte. Essa deslocação leva a um afloramento de águas profundas, mais frias. A situação é normal nos meses do Verão, estando associada à típica nortada sentida nas praias da costa oeste de Portugal – um vento de norte-noroeste que está relacionado com o anticiclone dos Açores.
A investigadora admite que a Primavera mais cinzenta e o começo mais tímido do Verão na região possam ter contribuído para um aquecimento (natural) mais lento das águas do mar, mas inclina-se para um ano com episódios mais fortes ou frequentes de afloramento costeiro. Uma ideia corroborada pelo nadador-salvador Luís Varela, que sublinhou a elevada frequência de nortadas no arranque da época balnear.
Alterações climáticas não são só sinónimo de aquecimento
Isabel Iglesias refere ainda que um ano mais frio ou mais quente não é, por si, motivo para procurar explicações extraordinárias. No entanto, deixa claro que a “existência de variabilidade não tira razão à existência de alterações climáticas”.
“Quando pensamos em alterações climáticas, pensamos mais em aquecimento global, que é algo mais intuitivo. Mas não existe só isso”, continua. “As alterações climáticas têm grandes efeitos em todas as variáveis meteorológicas e oceânicas que possamos imaginar.” Tal leva a que, no caso particular da costa portuguesa e galega, ainda não exista consenso quanto ao que as alterações climáticas podem trazer.
“Há autores que dizem que o afloramento costeiro pode estar a diminuir, outros dizem que pode aumentar. Mas a direcção em que vai não é clara”, acautela a investigadora, referindo até que uma das hipóteses em cima da mesa não é tanto um aquecimento ou arrefecimento da costa portuguesa, mas “uma mudança da direcção predominante dos ventos”.
Certo é que, por agora, a complexidade das condições meteorológicas e oceanográficas continuam a afastar as vagas de calor do Atlântico Norte das águas portuguesas e a escudar, em parte, o Norte da Península Ibérica de algumas das vagas de calor que atingem a Europa e o Norte de África.