Pugilista italiana eliminada por Khelif vai receber prémio monetário igual ao de campeões olímpicos

IBA, que não é reconhecida pelo Comité Olímpico, decidiu “apoiar atletas” que perderam contra Khelif e Lin Yu-ting, desqualificadas dos Mundiais em 2023, decisão nunca explicada pela federação.

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Khelif e Carini, ambas de 25 anos, competem na categoria de 66 quilos de peso médio YAHYA ARHAB / EPA
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A Federação Internacional de Boxe (IBA) vai premiar financeiramente a pugilista Angela Carini depois de a italiana ter sido eliminada pela argelina Imane Khelif na categoria de -66kg do torneio olímpico feminino de Paris 2024.

A IBA, que não é reconhecida pelo Comité Olímpico Internacional (COI), oferece um prémio de 100 mil dólares (cerca de 91 mil euros) ao vencedor de uma medalha de ouro, a ser distribuído pelo pugilista (50 mil dólares), pela federação do respectivo país (25 mil) e pelo treinador do atleta (25 mil).

Carini abandonou o combate aos 46 segundos, após ser atingida no nariz, sendo eliminada nos quartos-de-final por Imane Khelif, uma das duas pugilistas no centro da controvérsia sobre género no torneio olímpico de boxe.

“Não consegui ver as lágrimas dela. Não fico indiferente a estas situações e asseguro que iremos proteger e apoiar todos os pugilistas. Não consigo compreender porque é que estão a matar o boxe feminino. Apenas as atletas elegíveis deveriam competir no ringue, para salvaguardar a segurança de todos”, reagiu o russo Umar Kremlev. Da mesma forma, Kremlev garantiu que o organismo vai apoiar a uzbeque Sitora Turdibekova, que na sexta-feira perdeu em -57kg com a taiwanesa Lin Yu-ting.

IBA não explica desqualificação

O debate em torno das duas atletas começou já em 2023, mas explodiu esta semana e levou a que a atleta argelina, em particular, tenha sido alvo de uma onda de insultos, ataques, desinformação e transfobia.

Yu-ting e Khelif foram desclassificadas pela IBA nos Mundiais de 2023, que tiveram lugar em Nova Deli, na Índia, por "não cumprirem os padrões de elegibilidade". Umar Kremlev disse à agência de notícias russa Tass por essa altura que as desqualificações ocorreram porque “foi provado que elas têm cromossomas XY”.

A IBA rejeitou ter realizado testes com o objectivo de medir os níveis de testosterona das pugilistas, mas não revelou em que se baseou para excluir dos Mundiais Khelif e Yu-ting, que, no mesmo ano, foram autorizadas a competir nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, onde a taiwanesa conquistou a medalha de ouro na categoria de -57kg.

O COI, que está a supervisionar a competição de boxe em Paris, não faz testes de género, e nunca houve evidências de que Khelif ou Lin tenham cromossomas XY ou níveis elevados de testosterona — o que, só por si, não determina se alguém é um homem. "São mulheres, que praticam o seu desporto. Está estabelecido, neste caso, que são mulheres", reforçou na terça-feira o porta-voz do COI, Mark Adams. Em várias ocasiões, Adams viu-se obrigado a alertar que a controvérsia envolve “pessoas reais” e enfatizou que “esta não é uma questão transgénero”.

Escreve o The Washington Post (WP), citando três fontes familiarizadas com os detalhes do caso, que as desqualificações das atletas em 2023 ocorreram três dias depois de Khelif derrotar a russa Azalia Amineva e um dia depois de vencer a luta da semifinal na categoria 63-66kg.

Cansado de um histórico de escândalos e subornos que envolvem a IBA, o COI assumiu o controlo do boxe olímpico em Tóquio 2020, ainda antes de Kremlev — conhecido do Presidente russo, como revela a ABC News e uma reportagem do Le Monde de 2022, intitulada "Como um leal a Putin reina sobre o boxe amador, servindo o soft power russo" — ter sido eleito pela primeira vez como presidente da organização, em 2020.

Kremlev terá gastado muito dinheiro em marketing, alinhado apenas com um patrocinador — a empresa de energia russa Gazprom, controlada pelo Estado —, e entrado em conflito com a organização dos Jogos. O COI manteve o controlo da competição de boxe nos Jogos de Paris e deixou este desporto de fora do programa para Los Angeles 2028.

Na acta da reunião do conselho de directores da IBA, realizada dois dias após as atletas terem sido desqualificadas, George A. Yerolimpos, secretário-geral da organização na altura, disse que Yu-ting e Khelif não passaram nos testes conduzidos por um laboratório independente. Também foi mencionado que ambas tinham chumbado num teste diferente, conduzido por outro laboratório, no campeonato mundial de 2022, em Istambul, mas que os resultados tinham chegado demasiado tarde para que as atletas fossem desqualificadas, avança o WP.

A acta não menciona que tipo de teste foi feito nem o nome dos laboratórios. Yerolimpos disse na reunião que “acompanhou de perto” os testes das pugilistas assim que estas chegaram à Índia. E, numa declaração emitida esta semana, a IBA disse que as pugilistas “não foram submetidas a um exame de testosterona”, mas a “um teste separado e reconhecido”, acrescentando que o teste e os resultados são “confidenciais”.

O certo é que a questão está a provocar um braço-de-ferro entre o COI e a IBA, que pode comprometer mesmo a manutenção dos torneios olímpicos de boxe nos moldes actuais, mas Yu-ting e Khelif parecem contar com a protecção do organismo liderado pelo alemão Thomas Bach. Na quarta-feira, ainda antes do combate entre a italiana e a argelina, Kremlev recorreu ao X (antigo Twitter) para criticar a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, dizendo que a competição é uma "sodomia total" e significa a "destruição de valores tradicionais em todo o mundo", culpando o alemão e dizendo que este pertence a uma "quinta de porcos".

Apesar das dúvidas crescentes em relação às desqualificações no Mundial do ano passado, e do facto de nenhuma das atletas ser transgénero, foram várias as figuras públicas que aproveitaram a derrota da atleta italiana para falar de assuntos relacionados com atletas transgénero. A argelina foi particularmente visada na sequência da desistência de Carini, com a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, a argumentar que as atletas "não estavam em pé de igualdade", e Donald Trump, candidato republicano às presidenciais dos Estados Unidos, a escrever na rede social X que manterá "os homens fora dos desportos femininos".

Mas a pugilista Amy Broadhurst, que derrotou Khelif nos Mundiais, em 2022, saiu em defesa da atleta argelina. "Muita gente me tem perguntado sobre Imane Khelif. Pessoalmente, não acho que tenha feito qualquer tipo de ‘batota’. Acho que foi assim que ela nasceu e isso está fora do seu controlo. O facto de ela ter sido derrotada por nove mulheres diz tudo”, afirmou no X.

Também a atleta italiana disse na sexta-feira querer “pedir desculpa” à adversária Imane Khelif pela forma como lidou com a derrota no combate entre ambas. Angela Carini abandonou o ringue em lágrimas, falando numa “injustiça”. “Toda esta controvérsia deixou-me triste e também tive pena da minha adversária, que não tinha nada a ver com isto e, tal como eu, só estava aqui para lutar”, afirmou Angela Carini, citada pelo jornal italiano Gazzetta dello Sport. Com Lusa

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