Na Antárctida estão “apenas” 47 graus negativos: é uma onda de calor de longa duração
Prevê-se que as temperaturas se mantenham 28 graus acima da média em partes da Antárctida oriental durante os próximos 10 dias. A estação do Pólo Sul regista o mês de Julho mais quente desde 2002.
As temperaturas no solo da Antárctida oriental subiram mais de 28 graus Celsius acima da média, na segunda grande vaga de calor que aflige a região nos últimos dois anos. Esta vaga de calor histórico poderá persistir por mais 10 dias e é um exemplo assustador dos grandes picos de temperatura que este clima polar poderá registar com maior frequência num mundo em aquecimento.
"Esta onda de calor é um evento quase recorde (ou recorde) para a região da Antárctida, onde está a ter o maior impacto", disse Edward Blanchard, um cientista atmosférico da Universidade de Washington, num email. "A grande pegada da onda de calor é também notável", uma vez que cobre uma grande secção da Antárctida oriental, que constitui a maior parte do continente. A onda de calor ocorre a meio do Inverno antárctico, pelo que as temperaturas ainda rondam os 20 graus Celsius negativos.
Ainda assim, a anomalia de temperatura na Antárctida é a maior do globo, de acordo com os modelos meteorológicos. Prevê-se que as temperaturas se mantenham entre os 20 a 30 graus Celsius acima da média em partes da Antárctida oriental durante os próximos 10 dias. Têm estado substancialmente acima da média, com mais 10 graus Celsius, se considerarmos todo o mês Julho, mas não tão elevadas como agora. Na semana passada, subiram para 12 graus acima da média.
A estação do Pólo Sul vai registar o mês de Julho mais quente desde 2002, cerca de 6,3 graus Celsius acima da média, de acordo com o analista de temperatura da Antárctida, Stefano Di Battista. De 20 a 30 de Julho, a temperatura média na estação foi de 47,6 graus negativos, uma temperatura típica do final de Fevereiro — o final do Verão na Antárctida. Vostok, no centro da camada de gelo oriental, registará o mês de Julho mais quente desde 2009, com 6,5 Celsius acima da média.
"A onda de calor no planalto Antárctico é extraordinária, mais pela sua duração do que pela sua intensidade, embora alguns valores sejam notáveis", disse Di Battista por email. Embora grande parte do continente tenha estado excepcionalmente quente, uma vaga no Norte trouxe um frio extremo no início de Julho. No dia 17, por exemplo, as estações meteorológicas do Domo Fuji caíram para -82,1 graus Celsius, a segunda temperatura mais fria de Julho de que há registo.
Uma porta do frigorífico aberta
As temperaturas de Inverno na Antárctida flutuam substancialmente devido à falta de luz solar, mas esta onda de calor é um desvio da norma muito maior do que o habitual. É demasiado cedo para determinar todas as suas causas, mas os cientistas dizem que pode estar, pelo menos parcialmente, ligada a processos que ocorrem a 30 quilómetros acima da superfície, na estratosfera.
A estratosfera contém uma forte faixa de ar frio e baixa pressão que gira em torno de cada pólo, conhecida como vórtice polar. O vórtice é tipicamente forte e estável durante o Inverno no hemisfério sul, disse Amy Butler, uma cientista atmosférica da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica. Mas este ano, disse ela, foi sacudido por ondas atmosféricas, enfraquecendo o vórtice e fazendo subir as temperaturas a grande altitude; isto é conhecido como um evento súbito de aquecimento estratosférico. "A principal razão pela qual é notável é o facto de ser normalmente uma altura do ano relativamente calma para o vórtice polar do hemisfério sul", disse Butler. Este fenómeno conduziu a alguns recordes de temperatura na estratosfera.
Os dados mostram que o súbito aquecimento da estratosfera também está a afectar a baixa atmosfera. O aquecimento enfraqueceu a cintura de ventos de oeste à volta da Antárctida, normalmente designada por corrente de jacto. Isto permitiu que o ar gelado normalmente confinado perto do Pólo Sul se desviasse para norte, em direcção à Nova Zelândia, ao Sul de África e ao Sul da América do Sul, como uma porta de frigorífico entreaberta. Como o frio profundo escapou da Antárctida Oriental, as temperaturas subiram drasticamente em resposta.
As pressões atmosféricas sobre a Antárctida oriental também estão a subir para níveis "absolutamente loucos", escreveu no Twitter Ben Noll, um meteorologista baseado na Nova Zelândia. "O tempo no hemisfério sul está um pouco selvagem neste momento!", comentou.
Vários outros factores podem estar a contribuir para intensificar a onda de calor. A cobertura de gelo marinho da Antárctida é a segunda mais baixa de que há registo para esta época do ano — apenas um pouco acima dos níveis recorde registados em 2023. O gelo marinho ajuda a manter as regiões polares frescas, reflectindo a luz solar para o espaço. Também ajuda a manter o ar fresco, actuando como uma barreira entre o ar mais frio e as águas que têm estado excepcionalmente quentes este ano.
"É provável que a existência de menos gelo marinho e de um oceano Antárctico mais quente em torno do continente 'carregue os dados' para um Inverno mais quente na Antárctida", afirmou Blanchard. Deste ponto de vista, pode ser um pouco "menos surpreendente" ver grandes ondas de calor na Antárctida este ano, em comparação com um ano "normal" com condições médias de gelo marinho".
Os cientistas dizem que também é difícil ignorar que o mundo inteiro tem registado um calor recorde desde Julho passado, excedendo consistentemente uma média de 1,5 graus Celsius de aquecimento acima da era pré-industrial. No entanto, à medida que o globo aquece, os pólos estão a aquecer a um ritmo ainda mais rápido. Dados recentes sobre plataformas de gelo e os cálculos com modelos mostram que a Antárctida está a aquecer duas vezes mais depressa do que a média global.
Com o aumento das temperaturas globais, isso aumenta a potencial "linha de base" para as temperaturas médias, explica David Mikolajczyk, meteorologista investigador da Universidade de Wisconsin-Madison. Consequentemente, "episódios de forte aquecimento como este podem ocorrer com mais frequência e ter um impacto maior".
A maior onda de calor na Antárctida — e em qualquer parte do mundo — ocorreu em Março de 2022, quando a costa oriental da Antárctida atingiu, pelo menos, 39 Celsius acima do normal. "Infelizmente, estas ondas de calor estão a tornar-se cada vez menos surpreendentes para mim nos últimos anos, quando ocorreram vários destes fenómenos", lamenta Sergi Gonzàlez Herrero, cientista atmosférico do Instituto WSL para a Investigação da Neve e das Avalanches.