Kamala ou Donald? A escolha dos norte-americanos nas eleições presidenciais de Novembro far-se-á sentir como uma onda de dominós a cair em todo o mundo, mas nesta sexta-feira realizam-se as eleições mais importantes para o futuro da humanidade e é muito provável que nunca tenha ouvido falar delas.

O que está em causa é o futuro dos oceanos, e os oceanos são a máquina da vida no planeta a que todos chamamos casa. As eleições são para secretário-geral da Autoridade dos Fundos Marinhos (ISA, na sigla em inglês), uma agência das Nações Unidas que tem a dupla responsabilidade de assegurar a conservação dos ecossistemas do fundo dos oceanos e, ao mesmo tempo, criar as regras para que possam ser extraídos os minerais raros que lá existem, e que são muito necessários para a transição energética.

A oceanógrafa brasileira Letícia Carvalho, cuja candidatura foi apresentada pelo Governo brasileiro e é apoiada por Portugal, disputa o cargo ao advogado britânico Michael Lodge, que dirige a instituição desde 2016. As eleições decorrem nesta sexta-feira, na Jamaica, na sede da ISA.

Lodge, perdeu, entretanto, o apoio do seu país e é agora apoiado pelo Kiribati, uma nação insular do Pacífico, um dos pequenos Estados da região, com poucos recursos, com os quais a empresa mineira canadiana The Metals Company se aliou para tentar apressar a aprovação de um regulamento mineiro, que permita o início da extracção de minério. O próprio Lodge apareceu em vídeos de promoção desta empresa.

A gestão e a recandidatura de Michael Lodge está envolta em polémica e suspeita. O embaixador de Kiribati tentou convencer Letícia Carvalho a sair da corrida, oferendo-lhe um cargo na ISA, revelou o New York Times. Lodge disse ao jornal nova-iorquino que não comentava "boatos", embora o embaixador do Kiribati na ISA tenha confirmado o rumor ao diário norte-americano.

Nauru, tal como o Kiribati, aliaram-se à The Metals Company na esperança de virem a beneficiar economicamente da exploração dos recursos minerais no mar profundo. E esperam participar na luta contra as alterações climáticas porque os minérios do fundo do mar, como lítio, manganês, cobalto, podem ser usados em tecnologias fundamentais da transição energética, como painéis solares e veículos eléctricos.

Mas outros Estados insulares do Pacífico sentem-se acossados por esses mesmos interesses e rejeitam-nos. É o caso de Palau. "Estamos mais uma vez à mercê de poderosas forças externas, reminiscentes da exploração colonial que marcou a nossa história", afirmou o Presidente Surangel S. Whipps Jr, na reunião da assembleia da ISA em que pediu que esta agência se tornasse verdadeiramente num órgão que protegesse o oceano.

Palau, que é a favor de uma moratória da mineração em mar profundo, está sob intensa pressão chinesa. A China é talvez a nação mais empenhada na exploração mineira do fundo do mar, para não perder o controlo da cadeia de abastecimento de minerais fundamentais para as indústrias da transição.

Isto faz com que muitos países ocidentais, com os Estados Unidos à cabeça, queiram investir nesta corrida às riquezas do fundo do mar – é mais um aspecto da disputa em que o Ocidente se vê embarcado com a China, sempre com receio de perder. 

Se Michael Lodge se tem aproximado dos interesses das empresas e países que apoiam a mineração, tornando-se suspeito de não ser um árbitro imparcial, Letícia Carvalho não é uma cavaleira solitária contra a exploração mineira do mar profundo. Mas defende que não nos podemos lançar à pressa e mergulhar de cabeça quando ainda sabemos tão pouco sobre os ecossistemas de profundidade, e os impactos que a actividade mineira poderia ter sobre os seres vivos, muitos deles ainda desconhecidos.

Prova disso é a descoberta anunciada em Julho de que os nódulos polimetálicos, as pepitas onde se concentram os minérios cobiçados no fundo do mar, produzem oxigénio, o chamado "oxigénio escuro", porque é produzido na ausência da luz do sol.

"Não acredito que nenhuma empresa, seja qual for a sua escala, ou relevância, pode começar a actividade sem que a base regulatória esteja bem estabelecida e haja consenso", disse ao Financial Times nesta quinta-feira a cientista, que nos últimos anos tem trabalhado no Programa das Nações Unidas para o Ambiente.

O Governo português apoia a candidatura da brasileira, e apoia esta posição. "A exploração no fundo do mar só deverá ocorrer se o conhecimento científico e os meios tecnológicos disponíveis permitirem assegurar que os impactos decorrentes dessa actividade não provocarão danos irreparáveis ao ambiente", disse ao Azul o Ministério dos Negócios Estrangeiros, que conduz as negociações em nome de Portugal. "A operacionalização desta posição passa, inevitavelmente, pela existência de um Código Mineiro que regule a actividade."

Isto coloca Portugal entre os 32 países que defendem uma moratória ou uma pausa "ao abrigo do princípio da precaução", para além de várias entidades subnacionais, como vários estados norte-americanos (Califórnia, Hawai, Washington, Oregon). Há intensas movimentações e pressões, como uma carta de 50 organizações dirigida à Administração do Presidente Joe Biden para que os Estados Unidos apoiem a moratória.

No entanto, o resultado das eleições desta sexta-feira será certamente decisivo. Porque a ISA tem prestado demasiado atenção aos interesses das empresas mineiras, em especial da The Metals Company. "O que é estranho é a liderança de uma organização multilateral aceitar as exigências de uma empresa, empurrá-las para o processo do conselho da ISA para desenvolver um código mineiro", disse Letícia Carvalho, citada pelo Guardian.