Em Paris, a ginástica viu a noite de Simone e a noite de Biles
A americana foi às trevas, voltou e recuperou o que foi seu há oito anos, quando foi a “menina do Rio”. Rebeca Andrade foi soberba, mas não dá para competir com isto. Filipa Martins fez história.
Nesta quinta-feira, Paris assistiu à noite de Simone Biles – mais uma. Mas esta noite foi de Simone e de Biles, porque a ginástica artística e o desporto precisam das duas – e elas não são a mesma coisa.
Biles é a melhor ginasta da história, que reconquistou o ouro no all-around, o sexto ouro em Jogos, repetindo o triunfo de há oito anos, quando foi a “menina do Rio”. Já Simone é a mulher que saltou por cima das barreiras da vida, as desportivas e as pessoais, as físicas e as mentais, e se apresentou em Paris numa demanda pela redenção, depois de ir às trevas em Tóquio.
Juntas, divertiram, divertiram-se e divertiram-nos na Arena Bercy, em Paris. Mais sóbrias do que noutras fases da carreira – talvez um bom efeito de Simone em Biles –, com um lado mais circunspecto antes e depois dos exercícios, mas sempre alegres.
Quem gosta de desporto tem de gostar de Simone Biles. Quem gosta de ginástica tem de idolatrá-la, porque ser a maior do mundo nesta modalidade era uma coisa antes de Simone Biles e é outra depois dela.
Há umas décadas, ser a maior do mundo na ginástica era fazer coisas que, agora, uma atleta júnior ou juvenil consegue fazer. Ser a maior do mundo, como era Nadia Comaneci, era receber a primeira nota 10,00 da história e o placard electrónico mostrar “1,00”, porque nunca tinham pensado que a pontuação precisaria de quatro algarismos.
Agora, ser a maior do mundo requer todo um espectro diferente de talentos, profissionalismo, força e mentalidade. O desporto é diferente e estas atletas são, hoje, de outra estirpe. E Biles representa tudo isso.
Nesta quinta-feira, como detalhe supremo, foi precisamente Comaneci a dar início à sessão nas finais da ginástica, quase como uma bênção a Biles por parte de uma das que desbravaram o caminho ainda antes de Biles nascer.
A norte-americana venceu com 59,131 pontos, batendo a brasileira Rebeca Andrade, com 57,932, e a compatriota Sunisa Lee, com 56,465 – a campeã olímpica, modesta no início da final, foi buscar o bronze na última rotação, com um exercício tremendo no solo.
Como se passou
As rotações ditaram que o duelo Rebeca-Simone começaria logo no salto. Rebeca fez um salto quase perfeito, com “cola” na aterragem e cravou os pés no tapete. Mas Simone, mesmo com execução não tão perfeita, fez um salto de nível de dificuldade astronómico – partiu de 6,400, enquanto a brasileira partiu de 5,600.
Não era Rebeca que estava mal, Simone é que estava demasiado bem. Mas isso mudou. Nas assimétricas, ambas partiram do mesmo nível de dificuldade, mas Rebeca teve melhor nota na execução do exercício e reequilibrou as contas. A brasileira subiu em relação à qualificação, a americana desceu.
Depois, veio a trave. Dá sempre vontade de fecharmos um dos olhos e fazermos o esgar típico do pré-desastre, tal é a proximidade que existe para o abismo, mas tivemos mesmo de olhar.
E vimos, de novo, a melhor ginasta da história. Num exercício soberbo, Biles não deixou sequer as adversárias indiferentes, que aplaudiram várias vezes durante a rotina, tal era a perfeição do que se passava ali. E Biles não esteve sequer no seu melhor nesse aparelho – e foi, ainda assim, muito melhor do que todas as outras, nomeadamente Rebeca, que fez bastante pior do que na qualificação.
Faltava apenas o solo. E isso significava algo simples: é que Biles, como rainha do solo, tinha a vitória no bolso, desde que se mantivesse em pé e dentro do praticável durante o exercício.
Rebeca foi primeiro e, apesar de um passo em falso no primeiro movimento, fez um exercício soberbo. Mas não dá para lidar com Biles. Também por isso a brasileira celebrou tanto a prata: que encarou como prata ganha e não como ouro perdido.
Embalada por Taylor Swift, em Ready for It?, ela estava realmente pronta. Acertou o que tinha para acertar e aterrou sempre bem – e no local certo. Não era preciso ser um expert de ginástica para perceber o que se tinha passado ali. O ouro era dela e a Arena Bercy foi à loucura.
Filipa foi divertir-se
Para Filipa Martins, este era um dia de diversão, descontracção e encarar a prova numa busca pelo bónus: a final, que era o sonho, ela já tinha – tudo o que viesse agora era bónus, porque a melhor portuguesa de sempre ela já seria.
Depois do 37.º lugar em Tóquio, a ginasta portuense ficou em 18.º lugar, entre 24 finalistas, com um exercício sólido na trave para começar, algo que Filipa Martins valoriza sempre neste aparelho: solidez e sem quedas.
No solo não foi o melhor desempenho da ginasta, que teve de fazer, já nos segundos finais do exercício, uma pequena correcção de apoio fora do praticável, algo que lhe custou uma nota mais baixa do que na qualificação.
Por essa altura, a portuguesa estava em penúltimo, mas faltavam os dois aparelhos mais fortes: as “suas” assimétricas e o salto, aparelho no qual impressionou na primeira ronda.
Desta vez, foi diferente. A portuguesa não colocou força suficiente na impulsão pós-chamada e faltou-lhe altura no ar para completar o movimento – precisou de levar as mãos ao chão para aterrar.
Também no seu aparelho preferido ficou abaixo do que costuma fazer, mas, para a portuguesa, não era dia para se focar em centésimas. O importante era estar ali, junto das melhores do mundo. Isso ninguém lhe tira.