Eleição que decide futuro do mar profundo é esta sexta-feira. Portugal apoia oceanógrafa brasileira

Eleições para a Autoridade dos Fundos Marinhos, uma agência das Nações Unidas, realizam-se nesta sexta-feira e podem ser fundamentais para o futuro dos oceanos e da transição energética.

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Portugal apoia Letícia Carvalho, a candidata que disputa a liderança da agência das Nações Unidas que tem a dupla responsabilidade de preservar os ecossistemas do fundo dos oceanos e, ao mesmo tempo, criar as regras para a exploração dos minerais raros que lá existem, e que podem dar origem a uma nova indústria no valor de muitos biliões de euros. A brasileira Letícia Carvalho pode ser eleita nesta sexta-feira secretária-geral da Autoridade dos Fundos Marinhos (ISA, na sigla em inglês).

A oceanógrafa que trabalha no Programa de Ambiente das Nações Unidas (PNUA) disputa o cargo de topo ao actual secretário-geral, um britânico suspeito de ser demasiado próximo das empresas mineiras. A candidata proposta pelo Governo brasileiro para liderar esta organização onde estão representados os signatários da Convenção das Nações Unidas sobre a Lei do Mar (168 países e a União Europeia) trabalhou antes do PNUA na regulamentação da exploração petrolífera no mar em profundidade.

Na eleição que se realiza nesta sexta-feira na Jamaica, onde fica a sede da ISA (menos seis horas do que em Lisboa), Letícia Carvalho concorre contra o advogado britânico Michael Lodge, que dirige a agência desde 2016 – com o mandato renovado de uma forma algo polémica em 2020, durante a pandemia, sem que se tenha realizado uma votação.

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A cientista brasileira Letícia Carvalho, apoiada por Portugal para a eleição que decorre esta sexta-feira DiegoNoguera/ ISA

Sobre a direcção de Lodge recaem acusações de falta de transparência, mau uso de fundos e proximidade com empresas mineiras (apareceu em vídeos promocionais de uma empresa interessada na exploração de minérios dos fundos marinhos). O britânico perdeu, entretanto, o apoio do seu próprio país. A posição britânica evoluiu, desde 2016, e agora o Reino Unido está entre os 32 países que defendem uma abordagem cautelosa desta actividade – uma pausa, aplicando o princípio de precaução, até se compreenderem melhor os efeitos da mineração nos fundos marinhos, ou até mesmo uma moratória.

Não avançar sem Código Mineiro

O apoio de Portugal à candidatura de Letícia Carvalho foi confirmado ao Azul por um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), que representa o país na reunião do conselho e da assembleia da ISA, que decorre na Jamaica. “Portugal tem com o Brasil uma relação histórica de apoio mútuo a candidaturas internacionais e, tendo o Brasil apresentado uma candidata com um currículo revelador de elevada competência para o lugar, decidiu apoiar essa candidatura”, respondeu, por e-mail, um porta-voz do MNE. A comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) está igualmente a apoiar a candidatura da oceanógrafa brasileira, especialista em hidroacústica.

Estas eleições acontecem num momento crítico: o pequeno Estado insular Nauru accionou uma cláusula polémica, que estipula que a ISA deve adoptar os regulamentos necessários para poder iniciar-se a exploração mineira do fundo do mar dentro de dois anos após esse pedido ser feito.

Por trás do pedido de Nauru está uma grande empresa mineira canadiana, a The Metals Company, empenhadíssima na exploração do lítio, cobre, manganês, cobalto, minerais que se podem encontrar em zonas bastante profundas do Pacifico, sob a forma de nódulos polimetálicos: pepitas arredondadas, escuras, que mais parecem batatas.

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Michael Lodge, o actual secretário-geral da ISA Diego Noguera/IISD-ENB

Esses minérios são fundamentais para a transição energética, pois são usados, por exemplo, nas baterias dos veículos eléctricos ou no fabrico de painéis solares. Em causa está um mercado avaliado entre oito e 16 biliões de euros.

O pedido de Nauru foi apresentado em 2021, e já estamos em tempo de prolongamento, porque os Estados não conseguem chegar a acordo para criar as regras que constituiriam um Código Mineiro. O prazo foi alargado até 2025.

Foram já atribuídas 31 licenças de exploração, patrocinadas por 14 países, numa área que totaliza 1,5 milhões de km2, essencialmente no Pacífico equatorial, entre o Hawai e o México, contabiliza o jornal The Guardian. No entanto, estas licenças servem apenas para conhecer os fundos marinhos, os ecossistemas e o potencial mineiro – não para iniciar efectivamente uma actividade industrial.

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Camarão descoberto a 1795 metros de profundidade, numa missão de exploração da NOAA NOAA

Letícia Carvalho defende que não devem ser concedidas licenças de exploração comercial enquanto não tivermos um Código Mineiro pronto, e diz ainda acreditar que esse processo não pode ser apressado e vai levar alguns anos. “Não acredito que nenhuma empresa, seja qual for a sua escala, ou relevância, pode começar a actividade sem que a base regulatória esteja bem estabelecida e haja consenso”, disse a cientista e reguladora brasileira ao Financial Times nesta quinta-feira.

Esta é a posição defendida pelo Governo português: “A exploração no fundo do mar só deverá ocorrer se o conhecimento científico e os meios tecnológicos disponíveis permitirem assegurar que os impactos decorrentes dessa actividade não provocarão danos irreparáveis ao ambiente”, respondeu ao Azul o MNE, através do mesmo porta-voz do gabinete do ministro. “A operacionalização desta posição passa, inevitavelmente, pela existência de um Código Mineiro que regule a actividade.”

Por outro lado, a posição de Michael Lodge tem sido mais a de pressionar os Estados a não perderem tempo a aprovar a regulamentação da actividade, para que a mineração no fundo do mar se possa iniciar. A Metals Company tem dito que espera apresentar um pedido para iniciar trabalhos até ao fim do ano.

Moratória e bloqueio

E aqui chegamos à situação de bloqueio que se tem vivido na ISA. O Governo português garante que “não contribuirá para a aprovação de actividades de mineração com fins comerciais dentro e fora da sua jurisdição, em conformidade com o princípio da precaução e com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar”, se não tiver sido aprovado um Código Mineiro.

Isto, para todos os efeitos práticos, “configura a defesa de uma pausa na aprovação de eventuais planos de trabalho de mineração”, disse o Governo português, através das respostas do MNE ao Azul.

O número de países que defendem a pausa por precaução ou moratória tem aumentado. Só este ano, juntaram-se a este grupo Dinamarca, Grécia, Peru, Malta, Honduras, Tuvalu, Guatemala, Áustria, totalizando 32. A Assembleia da República declarou essa intenção em 2023 – e aguarda-se agora que os deputados dêem seguimento a esse processo, iniciado pelo Parlamento e não pelo Governo português.

Há vários países da União Europeia neste grupo, mas embora a UE defenda o princípio da precaução em geral, não há uma coordenação entre os 27, porque os Estados-membros mantêm as suas competências nacionais nesta matéria. A Polónia, por exemplo, não só é a favor da exploração mineira como tem vários pedidos de exploração.

Há um abismo nas posições e a necessidade de uma ponte. Letícia Carvalho diz que há mesmo uma quebra de confiança. “A actual divisão de posições entre os Estados deve-se em grande parte à falta de confiança e liderança, para além das falhas no conhecimento que temos ou na assimetria do conhecimento entre os países membros”, disse ao Guardian.

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A mineração em mar profundo far-se-á com grandes máquinas, navios-fábrica e robôs submarinos The Metals Company

Há ainda muito a descobrir, como mostra a descoberta de que os nódulos polimetálicos são capazes de produzir oxigénio, relatada por uma equipa de cientistas internacional há poucos dias revelada num artigo publicado na Nature Geoscience.

Só em Fevereiro foi disponibilizado um texto consolidado do projecto do Código Mineiro, cuja primeira leitura foi concluída na semana passada, adiantou o MNE ao Azul. Falta ainda cobrir os seus anexos e outros elementos que serão essenciais para o pôr em prática. "Há muitas matérias onde as posições estão muito afastadas e outras ainda em construção, como a determinação dos limites para a avaliação do impacto ambiental, que é um elemento essencial", disse o porta-voz ministerial português.

Esta situação parece favorecer a posição assumida pela candidata brasileira apoiada por Portugal. Mas Michael Lodge tem apoiantes sólidos, como a China, uma potência industrial na transição energética, que ambiciona chegar aos minerais do fundo mar - e é também a maior financiadora da ISA, como aliás do sistema das Nações Unidas.