O mar está a escavar “lágrimas” na base de uma plataforma de gelo na Antárctida

Veículo submarino analisou topografia da base de plataforma de gelo na Antárctida Ocidental e descobriu padrões inéditos. Pesquisa pode ajudar a prever melhor o futuro do degelo naquele continente.

azul,glaciares,clima,antarctida,alteracoes-climaticas,investigacao-cientifica,
Fotogaleria
A plataforma de gelo Dotson Anna Wåhlin/Universidade de Gotemburgo
azul,glaciares,clima,antarctida,alteracoes-climaticas,investigacao-cientifica,
Fotogaleria
Área na base da plataforma de gelo com várias estruturas em forma de lágrimas ou dunas. Estruturas estão esculpidas no gelo e têm profundidades que chegam aos 30 metros e comprimentos que alcançam os 300 metros Filip Stedt/Universidade de Gotemburgo
azul,glaciares,clima,antarctida,alteracoes-climaticas,investigacao-cientifica,
Fotogaleria
O veículo submarino autónomo Ran a submergir Anna Wåhlin/Universidade de Gotemburgo
azul,glaciares,clima,antarctida,alteracoes-climaticas,investigacao-cientifica,
Fotogaleria
Área na base da plataforma do gelo, do lado esquerdo, onde a água provocou uma erosão em camadas com forma curvas Filip Stedt/Universidade de Gotemburgo
azul,
Fotogaleria
Uma vista da plataforma de gelo Dotson Anna Wåhlin/Universidade de Gotemburgo
Ouça este artigo
00:00
06:02

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

A algumas centenas de metros de profundidade, no mar que banha a Antárctida Ocidental, um veículo submarino autónomo, de nome Ran, olhou para cima em direcção à base da plataforma de gelo Dotson e, com a ajuda de um sonar, analisou a topografia daquela enorme estrutura. Além de fracturas e socalcos espaçados, o Ran identificou na base da plataforma estruturas mais pequenas, escavadas no gelo em forma de lágrimas ou de dunas, que até agora não tinham sido identificadas, de acordo com um artigo publicado nesta quarta-feira na revista Sciences Advances.

Estas formações são testemunhas de processos dinâmicos entre o mar e o gelo que, ano após ano, vão erodindo plataformas como a de Dotson. Os investigadores acreditam que ao estudar estas dinâmicas é possível antecipar com mais exactidão o que vai acontecer à enorme massa de gelo acumulada naquele continente, no contexto do aquecimento global.

“As plataformas de gelo são importantes porque seguram o fluxo de glaciares na Antárctida. Se aqueles glaciares começarem a fluir mais rapidamente em direcção ao mar, eles vão somar-se ao mar e causar o aumento do seu nível médio”, explica ao PÚBLICO Karen J. Heywood, oceanógrafa e líder da investigação, do Centro para as Ciências do Oceano e da Atmosfera, da Escola de Ciências Ambientais da Universidade de East Anglia, em Norwich, no Reino Unido.

Base da plataforma de gelo com padrões de erosão Filip Stedt/Universidade de Gotemburgo

Algumas estimativas mostram que o gelo acumulado em toda a Antárctida equivale a uma subida do nível médio do mar de 58 metros. Estima-se que a grande maioria deste gelo, situada na região Leste da Antárctida, é estável e irá manter-se assim se a subida da temperatura média da Terra ficar abaixo do objectivo do Acordo de Paris, de dois graus Celsius. Mas o gelo da Antárctida Ocidental, banhada pelo mar de Amundsen, está a aquecer a um ritmo forte e, por isso, está muito mais comprometido. Se as massas glaciares desta região derreterem todas, um fenómeno que durará séculos, calcula-se que o nível médio do mar suba em 5,3 metros.

A plataforma de gelo Dotson é uma das várias plataformas de gelo da Antárctida Ocidental que se situam, justamente, na linha da frente destes acontecimentos. “Uma plataforma de gelo é uma massa de gelo glaciar, que é alimentada por glaciares tributários que estão em terra, e que flutua no mar por cima de uma cavidade”, lê-se no comunicado da Universidade de East Anglia. Estas plataformas servem como uma espécie de tampão em relação a todo o gelo que está em terra.

Entre Janeiro e Março de 2022, o veículo submarino Ran – nome derivado da deusa Ran, da mitologia nórdica, que governa o mar – viajou nessa cavidade ao longo de mais de 1000 quilómetros, para a frente e para trás, penetrando na cavidade até 17 quilómetros em comprimento, debaixo de água. Com isso, a equipa tentou analisar os fenómenos que estão a ocorrer entre a água salina e o gelo que está por cima.

“De momento, é realmente difícil quantificar o aumento do nível médio do mar que vamos viver nas próximas décadas. Os modelos climáticos mais actualizados que usamos ainda não conseguem simular muito bem as interacções entre um oceano relativamente quente e as plataformas de gelo. Necessitamos de perceber melhor o que está a acontecer quando a água encontra a base da plataforma de gelo, para que possamos representar melhor esses processos de derretimento nos modelos”, adianta Karen J. Heywood.

Para isso, um veículo submarino pode dar informações muito mais detalhadas do que, por exemplo, os dados obtidos por satélite. O veículo pode medir parâmetros como “a temperatura da água salgada, quão salgada é, quão turbulenta é, em que direcção é que está a fluir e a sua rapidez”, refere a investigadora. “O Ran também mediu a clorofila e a concentração de oxigénio da água salgada, o que nos fala da vida marinha que existe por baixo da plataforma de gelo”, acrescenta.

Espessura assimétrica

A plataforma de gelo Dotson tem cerca de 30 quilómetros de largura, mas a sua espessura é assimétrica. Do lado esquerdo e central da plataforma, de quem estiver no mar e olhar de frente, o tamanho do gelo situa-se entre os 400 e os 300 metros. Nesta região, o nível de derretimento na base é de um metro por ano. Do lado direito, a parede branca é mais fina, de 250 metros. Aqui, o derretimento anual ao nível da base é muito mais alto, de cerca de 15 metros por ano, adianta o artigo.

Foto
Área na base da plataforma de gelo com várias estruturas em forma de lágrimas ou dunas Filip Stedt/Universidade de Gotemburgo

As medições do Ran confirmaram o regime de movimentos de água que entram e saem da cavidade da plataforma de gelo e se coadunam com os níveis de derretimento. Do lado esquerdo, há um fluxo de água mais lento que vai penetrando a cavidade e não provoca um derretimento agressivo, embora vá escavando canais na perpendicular na base da plataforma de gelo. Do lado oposto, há um fluxo de água que sai da cavidade em velocidade, e que estará na origem da rapidez com que o gelo está a ser escavado naquela região. Foi também nesta região que o sonar detectou as estruturas em forma de lágrimas escavadas na base do gelo, algumas delas com 300 metros de comprimento.

“Revelámos pela primeira vez que existem padrões com a forma de gotas de lágrimas na base da plataforma de gelo – não era tudo liso como se esperava”, diz Karen J. Heywood. A equipa teve de recorrer a várias hipóteses para explicar a física por trás destes padrões. “Pensamos que estas formas de lágrimas são causadas pela rotação das correntes dos oceanos – estas rotações acontecem porque a Terra gira. Testámos o formato e o tamanho destes padrões debaixo do gelo e eles correspondem com as nossas teorias físicas dos oceanos.”

Além destas “lágrimas”, o veículo mostrou a existência de socalcos espaçados e revelou a dimensão das fracturas na plataforma de gelo, paralelas a linha da costa, e que também são observáveis a partir do satélite. No entanto, vistas de baixo de água, pelo Ran, foi possível ter uma dimensão do fenómeno de grande derretimento que ocorre dentro destas fracturas, principalmente as mais antigas.

“Estes novos resultados significam que os nossos colegas que produzem modelos numéricos poderão colocar estes processos nos seus modelos para conseguirem uma estimativa futura mais precisa do aumento do nível médio do mar”, defende a investigadora, que já detecta alguns sinais das alterações climáticas nas expedições que fez àquela região distante. “A primeira vez que fui à Antárctida, em 1995, havia muito mais gelo marinho. E havia muitos pinguins-de-adélia, que gostam de viver onde há gelo marinho. Actualmente, há menos gelo marinho, e o número de pinguins-de-adélia diminuiu.”