Conflito parental é o “maior flagelo”, avisa Comissão de Protecção das Crianças
“Estamos com situações de crianças que são autênticas bolas de ping-pong, de um lado para o outro, quando os pais estão em conflito”, alertou Rosário Farmhouse.
A presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens apontou o conflito parental como o "maior flagelo", a par da violência doméstica, com crianças "que são autênticas bolas de ping-pong" entre os pais.
Em entrevista à agência Lusa, quando termina o mandato à frente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), onde esteve sete anos, Rosário Farmhouse assumiu que o conflito parental é o que mais a preocupa actualmente.
"Estamos com situações de crianças que são autênticas bolas de ping-pong, de um lado para o outro, quando os pais estão em conflito", alertou a responsável, lembrando que "a relação terminou, mas a parentalidade não".
Rosário Farmhouse deu conta de um "drama maior", com as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) a receberem "testemunhos horríveis" de casos "nas mais variadas zonas do país", e em que "ninguém pensa no interesse da criança".
Contou o caso de uma criança, ainda em idade de creche que, como os pais estavam separados e cada um em zonas distintas do país, estava 15 dias numa creche e 15 dias noutra, e apontou que há casos em que os adultos "começam a entrar num registo que para a criança é um sofrimento atroz".
"Temos crianças com tentativas de suicídio, crianças com comportamentos auto lesivos, precisamente porque estão a viver a violência entre os pais, já para não falar da violência doméstica enquanto ainda estão juntos, que é outro flagelo", alertou.
Salientou que as crianças em contexto de violência doméstica desenvolvem "sintomas equiparáveis a sintomas de [trauma de] guerra".
"Não há nada pior do que ver as duas pessoas que são referência, que tanto amam, em guerra, seja enquanto vivem debaixo do mesmo tecto - e aí é horrível porque é constante -seja quando a separação é conflituosa, em que sempre que é tempo de trocar de pai é um drama, a criança perde o apetite, fica apática", alertou.
Revelou que há igualmente escolas a queixarem-se deste conflito entre pais e a dirigirem-se às CPCJ "sem saber como gerir" casos, como por exemplo, de "pais [que] vão à porta da escola fazer escândalo".
Defendeu que é preciso "avançar muito" no direito à participação das crianças em "todas as matérias que lhes dizem respeito", salientando que "o que elas querem mesmo é passar tempo de qualidade com os seus pais ou os seus adultos de referência".
Questionada sobre o aumento do número de crianças acompanhadas pelas CPCJ em 2023, mais 6,7% do que no ano anterior, e com perto de 55 mil comunicações de perigo, a maioria por negligência e violência doméstica, Rosário Farmhouse disse acreditar que esse aumento reflecte uma maior sensibilização da sociedade para a problemática.
Segundo a responsável, e em comparação com outros países, Portugal tem uma taxa de incidência semelhante, que ronda os 2,5% e os 3%, dependendo da zona do país.
Admitiu, por outro lado, que "cada situação de perigo é de uma complexidade enorme" e apontou que as CPCJ têm sentido que "as situações são cada vez mais complexas".
"Aquilo que aparentemente pode ser um absentismo escolar, quando se vai a ver é a ponta do icebergue. Há uma enorme tipologia de crimes por trás, não só negligência, mas às vezes violência, maus tratos físicos, maus tratos psicológicos, violência doméstica, e está tudo por trás a provocar que a criança falte à escola", exemplificou.
Lembrou, a propósito o papel das escolas na denúncia deste tipo de casos, apontando que "são a segunda entidade que mais comunica situações de perigo", e salientando que se trata de um "drama que não só põe em causa o direito à educação, mas também todos os direitos da criança".
Pornografia está a transformar relações dos jovens
Rosário Farmhouse alertou também para o impacto nas crianças e jovens da exposição a conteúdos pornográficos, tendo por base estudos internacionais. "[A pornografia] está a transformar por completo as relações entre adolescentes porque, quando começam a chegar à puberdade, o exemplo que têm foi baseado em conteúdos que viram e que são desadequados para a idade deles", apontou.
Segundo a responsável, estão a perder-se as relações de afectividade e os adolescentes estão a experienciar "graves problemas de iniciação da sua vida [sexual] ".
"Não sabem como iniciar porque querem replicar aquilo que viram, porque acham que aquilo que viram é que deve ser o modelo", explicou, apontando que isso muitas vezes tem como consequência relações de subjugação e de violência.
Rosário Farmhouse salientou que alguns adolescentes "acabam por entrar em relações que não querem porque acham que isso é normal".
"Sentem-se violentadas, muitas raparigas queixam-se disso. Os rapazes sentem uma frustração enorme por não corresponderem e tudo porque não tiveram formação e porque não perceberam que há todo um caminho a percorrer até depois fazerem o que entenderem dos seus corpos", alertou. "Há todo um caminho a percorrer, que tem várias etapas que têm que ser seguidas", acrescentou.
De acordo com a responsável, não há por enquanto dados sobre esta realidade em Portugal e os estudos mais recentes baseiam-se na experiência australiana e inglesa.
O Conselho da Europa está a tentar construir materiais que ajudem os vários países a lidar com estes "desafios novos" e para que possa "vir a haver uma educação sexual adequada à idade", para todas as crianças. "Sendo que esta é uma matéria que para alguns países ainda é tabu", apontou.
A presidente da CNPDPCJ contou que o Conselho da Europa está a tentar um consenso com os 46 Estados-membros, criando "documentos estruturantes e que permitam que as crianças cresçam de forma saudável em todos os ambientes".
"É um dos grandes desafios neste momento", apontou, sublinhando que esta questão está relacionada com a pouca qualificação digital por parte dos pais e a consequente pouca supervisão. Para Rosário Farmhouse, só será possível contrariar este fenómeno com "uma educação muito próxima".
A responsável defendeu que as crianças com competências digitais podem aprender não só os benefícios, mas também os perigos da internet, bem como os cuidados a ter no acesso a determinados conteúdos, formação que deve ser extensível aos pais ou cuidadores. "Só com esta educação é que conseguimos proteger, porque estamos perante um mundo que não tem fronteiras, que deixou de ter forma de travar o que quer que seja. Ou conseguimos pela educação chegar lá ou então vamos estar todos desprotegidos", salientou.
Sobre a educação sexual nas escolas, a responsável entende que "os conteúdos têm que ser adequados à idade", preparados por pessoas que saibam falar do tema. A par da educação sexual, a presidente da CNPDPCJ defendeu que é "absolutamente fundamental" que haja uma educação intercultural, apontando que as escolas são cada vez mais plurais e diversas e que isso "é uma enorme oportunidade".
"Temos de os ensinar a viver juntos. O respeito pelos outros, não generalizar, não julgar antes de conhecer, celebrar as diferenças é fundamental e as escolas que conseguem aproveitar a oportunidade da diversidade são escolas em que todos ganham", afirmou a responsável.