Mísia (1955-2024), a voz corajosa de aquém e além-fado

Correu os palcos do mundo e deixou a sua marca e o nome de Portugal por vários países. Mísia, cantora e fadista, morreu este sábado em Lisboa. Tinha 69 anos.

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Mísia em 2005 Luis Ramos
NFS Nuno Ferreira Santos - 25 Junho 2019 - PORTUGAL, Lisboa - Concerto da fadista Misia, no teatro Sao Luiz
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Concerto no Teatro São Luiz, 2019 Nuno Ferreira Santos
09 JANEIRO 01 - MISIA ++ DURANTE ESPECTACULO DE BILL T. JONES NO RIVOLI -2000/01/11- -01/12/21-
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Mísia num espectáculo de Bill T. Jones no Teatro Rivoli, Porto, em 2000 PAULO RICCA
NFS Nuno Ferreira Santos - 8 Outubro 2013 - PORTUGAL, Lisboa - Entrevista a Misia, cantora, fadista fala sobre o seu ultimo album Delikatessen - Cafe Concerto
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Em 2013, no lançamento do seu álbum Delikatessen, Café Concerto Nuno Ferreira Santos
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A cantora e fadista Mísia morreu este sábado, aos 69 anos. A notícia foi dada por Richard Zimler, escritor americano há muito radicado em Portugal, nas redes sociais. “Estou desolado, pois a minha velha amiga, a cantora Mísia, acabou de nos deixar. Partiu em paz, docemente, sem dores.” Assim foram também avisados os amigos da sua morte. Mísia encontrava-se internada há pouco mais de uma semana no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, na sequência de mais uma crise relacionada com a longa batalha que desde 2016 travava contra o cancro. Uma batalha com intermitências, com momentos de esperança à mistura com outros dolorosíssimos, que até ao final nunca lhe tiraram a vontade de viver.

Nascida Susana Maria Alfonso de Aguiar, no Porto, no dia 18 de Junho de 1955, ainda celebrou o seu 69.º aniversário na companhia de muitos amigos, no Café Buenos Aires, em Lisboa. Mesmo debilitada, nesse dia ainda a norteava uma frase em que insistia e que mostra bem a sua força anímica: “Não vou parar de viver, porque sou mais do que a minha doença.”

Os seus mais recentes discos, Pura Vida (2019) e Animal Sentimental (2022) nasceram em plena luta contra a doença. O primeiro, num momento de euforia, em que se julgou quase livre do pesadelo; o segundo, que veio acrescido de um livro homónimo, autobiográfico, gravou-o quando percebeu que a luta não terminara nem terminaria. Mas já tinha começado a “arrumar a casa”, com uma colectânea de 40 fados e canções a que chamou Do Primeiro Fado ao Último Tango (2016). Em 2019, numa entrevista ao PÚBLICO, falou assim desses anos: “Desde Setembro de 2016 até Setembro de 2018 estive a viver uma espécie de um calvário, uma via crucis, duas situações oncológicas graves que me levaram a fazer duas vezes seis meses de tratamentos, onde tive muito para pensar e perceber o que era a minha ideia de pura vida.”

Continuou a fazer tudo como se não estivesse doente. “Lembro-me de ter feito as conversas no Museu do Fado com o infusor de quimioterapia colocado, ou fotografias para revistas com roupa larga para não se perceber o infusor. Viajei, fiz concertos, em Lisboa e em Paris, na apresentação de Do Primeiro Fado ao Último Tango, em plena quimioterapia.” A música foi a sua bóia de salvação. “Nunca considerei a hipótese de parar de trabalhar. Não contei nada aos meus músicos, usava máscaras nos aviões, mas dizia-lhes que estava constipada. Tive momentos em que não tinha forças, tinha tonturas, mas quis continuar a fazer a minha vida.”

Esta determinação, teve-a desde sempre, porque também muito cedo se viu obrigada a fazer muita coisa sozinha. Filha de mãe catalã e pai portuense (que se separaram quando ela tinha 4 anos), não teve uma infância fácil, encontrando apoio sobretudo na avó materna, catalã. Passou a adolescência no Porto, mudando-se, antes de completar 20 anos, para Barcelona e depois para Madrid. Em 1991 voltou para Lisboa e data desse ano o seu primeiro álbum, Mísia, a que se seguiriam Fado (1993) e Tanto Menos Tanto Mais (1995).

Gravou-os, não como Susana Aguiar mas já como Mísia, nome pelo qual se apaixonou ao ler a biografia de uma musa parisiense de origem polaca nascida em São Petersburgo, na Rússia dos czares, no ano de 1872: Maria Zofia Olga Zenajda Godebska, que, próxima de nomes das artes como Gide, Mallarmé, Proust, Debussy, Monet, Renoir, Toulouse-Lautrec, Paul Signac ou Coco Chanel, era conhecida pelo diminutivo polaco de Maria, Mísia, tornando-se Mísia Sert ao casar-se com o pintor catalão Josep Maria Sert. E assim, num repente, Susana se tornou Mísia.

Os discos seguintes, Garras dos Sentidos (1998) e Paixões Diagonais (1999), vieram firmar a singularidade do seu canto e da sua abordagem ao fado, muito pela via dos poetas e da força das palavras, caminho que nunca abandonaria até ao final. E enquanto cantava nomes como José Saramago, Agustina Bessa-Luís, Lídia Jorge, Hélia Correia, Mário Cláudio, José Luís Peixoto, Vasco Graça Moura, Tiago Torres da Silva, Amélia Muge, Jorge Palma, Vitorino ou Sérgio Godinho (é dele a canção Liberdades poéticas, que ela depois usaria como título de representação), colaborava com nomes como Maria João Pires, Maria de Medeiros, Agnès Jaoui, Maria Bethânia, Adriana Calcanhotto, Fanny Ardant, Isabelle Huppert, John Turturro, Bill T. Jones, Carmen Maura, Miranda Richardson, Sophie Calle, Ute Lemper, Gilbert & George, Iggy Pop e tantos outros.

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Fotografia integrante da arte visual de Pura Vida (banda sonora) CB Aragão

Uma prenda para Amália

Como em Portugal, por várias vezes, lhe perguntavam se morava em Paris, mudou-se para lá nos anos 2000, regressando cinco anos depois à mesma casa do Bairro Alto, em Lisboa, onde viveu até agora e da qual nunca teve coragem de se separar definitivamente. E, depois dos discos Ritual (2001), Canto (2003, dedicado a Carlos Paredes) e Drama Box (2005), voltou a cantar Lisboa em Ruas, Lisboarium & Tourists, um disco duplo onde havia Fernando Pessoa, António Botto, Ary dos Santos ou Vasco Graça Moura, mas também Nine Inch Nails, Joy Division, Camarón de la Isla ou Dalida.

Se em Portugal sempre teve seguidores fiéis (a que carinhosamente chamava “misianos”), no estrangeiro Mísia encheu salas em inúmeros países. “Estive em sítios onde ainda não se tinha cantado fado, em sítios onde só lá estive eu depois da Amália”, disse ela em 2005. Amália que foi, para Mísia, a maior referência no fado e que dela terá dito um dia: “Esta, ao menos, não imita ninguém.” Mísia viria a dedicar-lhe um disco duplo, Para Amália (2015), depois de dois discos marcados pela poesia e pelo cruzamento de sonoridades fadistas e além-fado, Senhora da Noite (2011) e Delikatessen, Café Concerto (2013).

Esse disco, com quatro composições originais (assinadas por Amélia Muge, Mário Cláudio, Tiago Torres da Silva e pela própria Mísia​) e vários fados do repertório de Amália, foi assim descrito por Mísia numa de várias entrevistas ao PÚBLICO: “Fiz o caminho inverso do que às vezes se faz quando se começa uma carreira a cantar coisas da Amália. Gravei a [canção] Lágrima no meu primeiro disco e canto-a pontualmente, mas tive sempre a prudência de não ir por aí. Até para poder ter, primeiro, um caminho meu. Agora, sim, posso dizer ‘vou dar uma prenda à Amália’, como dei uma prenda ao Carlos Paredes com o Canto [todo ele com letras originais de Vasco Graça Moura]”.

Distinguida com prémios e menções honrosas, Mísia participou em vários projectos paralelos, do teatro (com destaque para Giosefine, monólogo inspirado num livro de Antonio Tabucchi, com estreia em Buenos Aires e uma representação posterior em Coimbra) à música erudita (Fado & Lieder de Schubert ou Our Chopin’s Affair), passando pela música popular brasileira (Lupicínio Rodrigues, Cartola e Dorival Caymmi, com produção artística de Adriana Calcanhotto) ou pelo cinema, com Passione, documentário filmado e narrado por John Turturro em Nápoles e estreado em Nova Iorque.

Em 2021 apresentou no Centro Cultural de Belém o concerto As Mais Bonitas, anunciado não com uma fotografia, mas com um quadro a cores da pintora francesa Anne-Sophie Tschiegg, que viria a fazer também a capa do livro e do disco Animal Sentimental e que não só esteve com ela na festa do 69.º aniversário, como acompanhou Mísia, com outros amigos, nos últimos momentos da cantora.

Mesmo nestes últimos anos, Mísia só renunciou aos palcos em casos extremos. Em Maio de 2022, no Museu do Oriente, num dos seus últimos concertos, abriu-o com estes versos de Tiago Torres da Silva, que ali também assinou a encenação e dramaturgia: “É da morte que te escrevo/ Não sei se posso ou se devo/ ‘screver-te deste lugar/ Não tive jeito prá vida/ Por me faltar a medida/ Que a morte tem pra me dar” (As palavras vestem luto); e fechou-o num clima de festa, a cantar Cha cha cha em Lisboa. Como ela disse há quase 20 anos, sempre se sentia à-vontade neste fio de navalha, a lidar com “sentimentos terminais, amor que mata e nunca morre”. E fê-lo sempre de cabeça erguida, com uma resistência ímpar, na música como na vida. Ainda que Susana agora nos deixe, é certo que Mísia jamais nos deixará.

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